segunda-feira, 6 de julho de 2009

Relações entre história e filosofia da ciência

Na obra A tensão essencial que compila artigos de Thomas Kuhn, encontramos uma interessante análise sobre a forma como se deve abordar o desenvolvimento da ciência. Resumirei alguns pontos centrais de um dos artigos, denominado "As relações entre história e filosofia da ciência", relações estas que Kuhn observa a partir da sua experiência docente com turmas que apresentavam estudantes com formação em história e outros em filosofia.

1) Diferença de objetivo: Kuhn compreende que a história é a narrativa de fatos do passado, que torne plausível e compreensível um certo conjunto de acontecimentos. Já a filosofia busca generalizações de caráter universal, que seriam verdadeiras em todas as épocas e lugares.

2) Diferença quanto ao método de investigação: Kuhn percebe que o historiador apresenta mais facilidade de apresentação dos conceitos do autor que analisa, conseguindo visualizar as repercussões desse pensamento para contemporâneos e sucessores. Por outro lado, o filósofo tem mais facilidade com distinções analíticas, reconstruindo argumentos para depois criticá-los.

3) Diferença na composição de textos: Segundo Kuhn, o historiador realiza uma investigação prévia a composição das narrativas históricas, na qual analisa as fontes, seleciona dados etc., e sua atividade criativa não cessa durante todo o processo de composição do texto. O filósofo, por sua vez, não realiza o mesmo tipo de pesquisa prévia que o historiador, estando mais interessado nos problemas e possíveis soluções para os mesmos. Daí que inicie a composição do texto apenas quando já tenha uma solução em vista ao problema identificado.

4) Quanto a atividade crítica: Kuhn considera que esta seria uma atividade do filósofo por excelência, pois o historiador, como dissemos, parte da sua investigação prévia de fatos e dados para a composição da narrativa histórica.

Feita esta análise, Kuhn conclui que a interação entre as duas disciplinas, história e filosofia, deve ser interdisciplinar e que o estudioso do desenvolvimento da ciência deve utilizar ora o método da história, ora o método da filosofia, pois apenas assim é possível chegar a uma análise mais completa do fenômeno científico.

English version - Relations between the history and the philosophy of science

In the book The essential tension that compiles articles from Thomas Kuhn, we find an interesting analysis on how to approach the development of science. I will summarize some central points of one of the articles, entitled "The relations between the history and the philosophy of science," Kuhn apprehends these relations from his teaching experience with classes that had students with training in history and others in philosophy.

1) Difference in goal: Kuhn understands that history is the narrative of past events, making a set of events plausible and understandable. Yet philosophy seeks generalizations of universal character, that would be true in all times and places.

2) Difference in the method of research: Kuhn realizes that the historian has more facility in the presentation of concepts from the author he analyzes, visualizing the impact of that thought to contemporary and successors. Furthermore, the philosopher has more facility with analytical distinctions, reconstructing arguments and then criticizing them.

3) Difference in the composition of texts: According to Kuhn, the historian conducts a preliminary investigation before the composition of historical narrative, which examines the sources, select data etc., and their creative activity does not cease during the whole process of composition of the text. The philosopher, in turn, does not perform the same kind of prior research like the historian, and he is more interested in the problems and possible solutions to them. Then he begins the composition of the text only when he already has a solution in sight to the problem identified.

4) On the critical activity: Kuhn believes that this would be an activity of the philosopher par excellence, since the historian, as said begins his prior investigation from facts and data to the composition of the historical narrative.

Following this analysis, Kuhn concludes that the interaction between the two subjects, history and philosophy, must be interdisciplinary and the development of science' scholar must use sometimes history's method and other times philosophy's method, because it is the only way to reach a more complete analysis of scientific phenomenon.

3 comentários:

Ensimesmado disse...

Oi Débora, deixa eu fazer minha estréia no seu blog...

Queria me deter em sua frase "...o estudioso do desenvolvimento da ciência deve utilizar ora o método da história, ora o método da filosofia, pois apenas assim é possível chegar a uma análise mais completa do fenômeno científico"
Isso é interessante, pois denota, primeiro, que o Estudo do Desenvolvimento da Ciência usa de duas disciplinas por ele reconhecidas como opostas e, segundo, que é necessário (e talvez suficiente) o uso dessas duas disciplinas para completar o estudo.

Ora, aí eu me pergunto: qual é o método do Estudo do Desenvolvimento da Ciência (EDC)?

Melhor desenvolvendo a questão:
1) Ele é algo composto pelo método da filosofia e o da história e nelas se resume? Pois, se EDC se resumir a usar esses métodos basta pegar o que filosofia da ciência e história da ciência produziram e juntar, que nós teremos o EDC completo. (é verdade que resumo bastante, mas se for isso, no fim das contas o resultado vai ser esse e, se isso for indesenjável, é preciso fazer um esforço constante para não cair nele).

2) EDC possui um método próprio, além dos da filosofia e da história? (ou seja, esses dois não são suficientes, mas apenas necessários para o Estudioso). Pois se é assim, vemos um grau de originalidade do EDC. Nesse caso, como é esse método? Não pode ser apenas uma junção do da filosofia e do da história, pois nesse caso recairíamos no resultado de 1. Pode até ser uma mistura, mas ela tem que gerar algo mais, o que é então?

3) Em que medida é interessante ao EDC parasitar métodos? Pois fazendo isso, ele não já corre o risco de cair num círculo vicioso? Afinal, se o EDC ele próprio está construindo filosofia da ciência, então precisará estudar a si mesmo? Não é mais interessante para o EDC ter seu método próprio e deixar completamente de lado os dos demais?

4) A filosofia da ciência e a história da ciência são apenas conhecimentos preliminares, dos quais o Estudioso tomará conhecimento mas partirá para outro campo? Nesse caso, Kuhn estaria apenas falando de um pré-EDC, ou não?

Por fim, me parece que o EDC cria algo novo ao misturar dois métodos. Com isso ele cria uma nova corrente histórica e filosófica e, paradoxamente, desfaz a própria contraposição antes feita entre filosofia e história.

Hugo Tiburtino

Débora Aymoré disse...

Olá, Hugo.

Em primeiro lugar, obrigada por ler e postar no meu blog. Só posso atribuir essa graça à nossa amizade, visto que eu ainda tenho pouca disciplina em relação às minhas contribuições eletrônicas. Em segundo lugar, nossa quantas perguntas! Espero resumí-las bem nas duas perguntar que se seguem: 1) Uma vez que a ciência necessita de duas disciplinas (filosofia e história) para realizar sua tarefa compreensiva sobre a ciência, 2) estas disciplinas ofereceriam ao historiador uma primeira análise sobre a ciência a partir da qual escreveria sua narrativa histórica. Neste último caso, parece-me que você sugere que haveria uma metodologia posterior, própria da narrativa histórica, pois ela, como dito antes, se utilizaria dos resultados das disciplinas anteriormente citadas.

Bom, vou tentar responder em parte a partir das contribuições de Kuhn e em parte extrapolando o que ele próprio conseguiu desenvolver sobre a metodologia da história da ciência. Acho que um modo interessante para começar a resposta às suas questões é o seguinte: o historiador lida com determinados indícios para construir sua narrativa histórica e tais elementos, que podem ser textos, fragmentos arqueológicos etc, serão analisados e interpretados pelo historiador, de modo que poderíamos afirmar que é a interpretação que, em última instância, antecede a narrativa. Ora, na análise da ciência proposta por Kuhn, essa interpretação não é realizada a partir de qualquer perspectiva, ao contrário, é feita a partir das contribuições de disciplinas, no caso, a filosofia e a história. Isto porquê Kuhn está oponto sua perspectiva histórica da ciência em relação à tradição anterior de historiografia (falei sobre isso na palestra de ontem), mas que de qualquer modo pode ser caracterizada por sua visão anacrônica sobre as obras científicas, uma vez que procura identificar nas obras ou nas contribuições do passado aqueles elementos que justificam o estado atual da ciência.

Aqueles historiadores, da chamada historiografia tradicional da ciência, partiam da perspectiva de que a ciência se desenvolve a partir de um método único (tal como no caso dos racionalistas críticos identificavam no falseacionismo popperiano) e de modo progressivo (tal como no caso dos empiristas lógicos do Círculo de Vienna). Por outro lado, a historiografia kuhniana procura evitar este anacronismo, que poderíamos idenficar com o estabelecimento de determinados critérios gerais de cientificidade.

Débora Aymoré disse...

Identificados estas características gerais da historiografia da ciência kuhniana, eu poderia afirmar o seguinte: a depender do "corte" temporal e espacial que o historiador estabeleça como objeto de estudo, uma ou mais disciplinas serão necessárias. Um exemplo. Ao estudar a Física aristotélica, momento em que afirma-se são haver uma discinção nítida entre filosofia e ciência, o papel da análise filosófica seria, talvez, mais relevante que identificar elementos científicos em Aristóteles. Por outro lado, se o historiador estabelece como objeto a relação entre a Física aristotélica e as revisões e críticas realizadas nos séculos XVI e XVII, por exemplo, à sua concepção de movimento, aí parece-me que a história exerceria um papel importante, talvez mais proeminente que a filosofia, pois seria necessário visualizar como o conceito de movimento variou a partir de um momento histórico considerado (Antigüidade) para um segundo momento (nascimento da ciência Moderna). Para complicar ainda mais esta análise, posso antecipar a seguinte informação. Kuhn também identifica a importância da Sociologia para a análise da ciência e, desenvolvendo um pouco mais o exemplo anterior, poderíamos afirmar que, para que possamos identificar com precisão a noção contemporânea de movimento, uma análise sociológica seria mais apropriada, pois é capaz de captar o presente, enquanto a história só se volta para o passado.

Mesmo que consideremos desta maneira, observe que a filosofia continua presente nas duas disciplinas, por oferecer o pano de fundo das interpretações, afirmando, por exemplo, o que é ciência e auxiliando, neste sentido, no próprio tipo de interpretação que será feito.

Com relação à questão de integrar os métodos da filosofia e da história, posso lhe dizer que Kuhn nega esta possibilidade, pois ele considera que o debate entre estas disciplinas e o uso que o historiador pode fazer delas é interdisciplinas e não intradisciplinar. Sendo assim, não caberia misturar os seus métodos. Considero que esta defesa da independência metodológica está relacionada à questão de que, para Kuhn, é muito importante que o historiador (e o cientista) tenham uma reflexão crítica sobre a sua atividade, reflexão esta que inclui a identificação de como realizam e quais os motivos que justifica a narrativa que propõem.

Enfim, espero ter respondido em alguma medida as suas perguntas.

Até breve!