"Imagina homens um uma morada subterrânea e forma de caverna, provida de uma única entrada com vista para a a luz em toda a sua largura. Encontra-se nesse lugar, desde pequenos, pernas e pescoço amarrados com cadeias, de forma que são forçados a ali permancer e a olhar apenas para frente, impossibilitados, como se acham, pelas cadeias, de virar a cabeça. A luz de um fogo acesso a grande distância brilha no alto e por trás deles; entre os prisioneiros e o foco de luz há um caminho que passa por cima, ao longo do qual imagina agora um murozinho, à maneira do tabique que os pelotiqueiros levam entre eles e o público e por cima do qual executam suas habilidades (...). Observa, então, ao comprido desse murozinho homens a carregar toda sorte de utensílios que ultrapassam a altura do muro, e também estátuas e figuras de animais, de pedra, ou de madeira, bem como objetos da mais variada espécie" (A República, Livro VII, 514a-515a. Tradução de Carlos Alberto Nunes).
Em nossa postagem anterior, identificamos como ponto central de "O Labirinto do Fauno" a busca da alma, afirmando também que este elemento aproxima o filme da tradição mitológica grega. Além disso, afirmamos que na mitologia, usualmente são apresentados dois mundos que se relacionam: o mundo dos homens e o mundo dos deuses, sendo que apenas o primeiro está sujeito à passagem do tempo. Sem saber ao certo se é possível classificar a alegoria da caverna de Platão com a tradição mitológica ou não, apresento nesta segunda postagem algumas relações que pude estabelecer entre o filme e esta alegoria. Parece depreender-se da passagem acima, que na alegoria da caverna de Platão existem quatro elementos semelhantes às alegorias utilizadas no filme: (1) que as pessoas estão dentro de uma caverna (ambiente) e (2) presas por grilhões, tais pessoas tem a sua possibilidade de movimento reduzido (limite físico), bem como (3) só conhecem aquilo que chega aos olhos a partir de objetos, transportados às suas costas (limite cognitivo) e (4) mal iluminadas por feixe de luz. Na continuação do texto, Platão sugere que um dos prisioneiros seja libertado e submetido, primeiramente, a olhar par aos próprios objetos, sendo finalmente levado para fora da caverna, para contemplar diretamente a luz do Sol. Proponho a seguir a aproximação entre estes quatro elementos com os da história narrada pelo filme.
Deste modo, em relação ao ambiente, vemos que em "O Labirinto do Fauno" a personagem Ofélia também é levada ao labirinto, apesar de não ter nascido nele, como no caso dos presos da alegoria platônica. A não ser que se reconheça que a mudança para a montanha, juntamente com sua mãe, seja um novo começo e, portanto, como a entrada em uma nova vida. Neste sentido, o labirinto representaria apenas um aprofundamento em relação a esta nova vivência. Outro ponto parece-me interessante destacar. Tando a caverna, quanto o labirinto possuem apenas uma entrada e, uma vez dentro de um deles, se está cercado por muros. Isto, a meu ver, aproxima as duas imagens, da caverna e do labirinto, de tal modo que se possa afirmar que o labirinto é apenas imagem mais complexa e datalhada que a da caverna. Ambos, porém, remetem ao subterrêneo, ao obscuro ou, pelo menos, ao desconhecido.
A partir da consideração de que Ofélia não nasceu no labirinto, podemos afirmar que ela tem a escolha de entrar ou não nele. Observe-se que, inicialmente, quando ainda desconhecia inclusive que passaria por provas, ela adentra de boa vontade, seguindo a fada que rapidamente mostra-lhe o caminho até o centro, onde encontraria pela primeira vez o Fauno. No entanto, há uma progressão no filme. pois na medida em que passa pela segunda e pela terceira provas, não apenas se torna mais difícil passar por elas, pois parece que todo ambiente ao redor de Ofélia conspira para dificultar sua realização, como também a própria boa vontade com que ela originalmente se relaciona com os seres fantásticos que encontra na sua nova vida dá lugar ao medo e ao receio, próprios de pessoas que passam da infância para a fase adulta e que agora são capazes de observar a vida partindo de aspectos mais profundos e penosos da alama humana, como foi para Ofélia a perda de sua mãe e o processo de autoconhecimento engendrado pelas provas pelas quais passava.
Se passarmos agora para a parte interna da caverna, teremos as pessoas presas por grilhões o que, como afirmamos, leva a que tenham uma limitação física, que também leva à limitação cognitiva. Ora, interpretando a entrada na caverna e a entrada no labirinto como a situação que se quer superar, a solução para as limitações impostas é encontrar a saída. No entanto, aqui parece surgir uma diferença importante entre a entrada na caverna e a entrada no labirinto, pois, aparentemente, o objetivo de saída da caverna para a contemplação do Sol ou, de modo gradual, da verdade, a entrada no labirinto leva a quantidade maior de caminhos enganadores, de maneira que, por mais que haja uma saída, a altura dos muros e a ausência de iluminação pode retardar dolorosamente o fim. Assim, a entrada da caverna é equivalente a sua saída, tanto que o prisioneiro liberto e que contemplou o Sol, quando retorna à caverna para comunicar aos seus antigos companheiros de cárcere, entra pela mesma entrada. Por outro lado, a entrada do labirinto não é equivalente a sua saída. Ou, pelo menos, podemos afirmar que existem duas saídas: a primeira, que retorna para o mundo dos homens e a segunda, que retorna para o mundo subterrâneo, onde Ofélia é Moanna.
Esta assimetria da entrada e da saída do labirinto parece-me explicável a partir da ideia de que o labirinto é a busca interna da alma, uma espécie de mergulho em si mesmo, enquanto a saída da caverna seria aparentemente a contemplação de uma verdade exterior. Esta conclusão, no entanto, estaria em desconformidade com outras afirmações de Platão, em que não seria possível incluir na alma o conhecimento que ela já não possuísse, sendo o processo de educação entendido como lembrança. Aqui vemos, portanto, que a diferença entre a imagem da caverna e a do labirinto com relação à sua aparente assimetria entre o interno e o externo (ou entre a entrada e a saída) se dissolveria, pois em ambos os casos o objetivo seria fazer com que a alma rememorasse aquilo que desde o início já era conhecimento seu.
Por estes motivos, considero que, por mais que o Fauno apresentado no filme estabeleça provas para que se torne evidente que Ofélia é Moanna, ele, tal como o pai da princesa que estava certo do seu retorno, já a reconhecera. Então, para que ele teria a feito passar por três provas? Parece-me que a explicação plausível para isto é o fato de que Ofélia, na verdade, não recorda de sua origem e será apenas quando tenta efetivamente agir como uma princesa do subterrêneo, salvando a árvore, enfrentando seus medos e sacrificando-se por outro, que passa a rememorar quem ela é realmente. Configurando, assim, as provas como encrusilhadas internas de autoconhecimento.