sábado, 15 de maio de 2010

A busca da alma em "O Labirinto do Fauno", parte 1


"Conta-se que, há muito tempo, no reino subterrâneo, onde não existe a mentira ou a dor, vivia uma princesa que sonhava com o mundo dos humanos. Ela sonhava com o céu azul, a brisa suave e o sol brilhante. Um dia, burlando toda a vigilância, a princesa escapou. Uma vez do lado de fora, a luz do sol a cegou e apagou de sua memória qualquer indício do passado. Ela se esqueceu de quem era e de onde vinha. Seu corpo sofreu com o frio, a doença e a dor. E, passados alguns anos, ela morreu. No entanto, seu pai, o rei, sabia que a alma da princesa retornaria talvez em outro corpo, em outro tempo e em outro lugar. E ele a esperaria até o seu último alento até que o mundo parasse de girar".

Esta é a narrativa que dá início ao filme "O Labirinto do Fauno", uma bela obra de arte dirigida por Guillermo del Toro. São muitas as perspectivas pelas quais podemos interpretá-lo, mas apresento nesta primeira postagem, alguns elementos do filme, para que, na segunda parte, possa estabelecer algumas relações entre esta obra e temas eternizados por uma tradição e uma época diferente da nossa, que é a antiguidade grega. De modo geral e bastante simplificado, a mitologia grega estabelece em vários mitos relações entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses, afirmando que não apenas a vida terrena está sujeita a vontade de determinadas forças da natureza, que naquela tradição era representada por deuses que hipostatizavam alguns caracteres humanos, mas afirmava-se também que a origem do homem, ou pelo menos de sua alma, guardava algum parentesco com este mundo não-humano e que, portanto, a depender do tipo de vida que se levava, a alma ao fim da vida poderia retornar àquele mundo que, em última instância, representa sua origem e seu destino final. Não me concentrarei nesta relação ou mesmo na questão de se essas forças efetivamente existem, porém gostaria de ressalter o tema da busca da alma, que, parece-me estar relacionado tanto em alguns mitos gregos, como no filme "O Labirinto do Fauno".

É possível apresentar já nesta caracterização da mitologia grega a primeira relação com a temática de "O Labirinto do Fauno", pois a princesa em questão tem origem no mundo subterrâneo do mesmo modo que a alma humana, que segundo a tradição mitológica grega, também tem origem diversa do mundo humano. Não ousaria aqui afirmar que o mundo humano é oposto ao dos deuses, mas é relevante mostrar algumas diferenças. Por exemplo, a questão do tempo, pois o mundo humano está sujeito à mudança, ao nascimento, ao crescimento e à corrupção, enquanto o mundo dos deuses seria eterno e, portanto, não sujeito a estes mesmos condicionamentos. Obseve-se na narrativa de "O Labirinto do Fauno", que o mundo subterrâneo é livre da dor e da mentira, ou seja, livre dos condicionantes próprios da temporalidade. E, é apenas quando a princesa sai de seu mundo original que passa a sofrer a dor, a doença e a morte, marcadores claros da passagem do tempo. No entanto, a transição para o mundo humano não marca uma ruptura em relação ao mundo subterrâneo, pois afirma também a narrativa inicial do filme, que o pai da princesa sabia que ela retornaria e ele aguardaria o seu regresso. Apesar de o regresso ser apresentado como possibilidade, ele não é um regresso fácil. A princesa em questão passará por provas severas, antes de poder retornar ao seu mundo: essas provas são para que possa adentrar ao mundo ou para que ela própria possa relembrar a sua origem?

Tratando mais diretamente do filme, vemos que já na primeira noite em que Ofélia passa na montanha, ela segue uma fada até o labirinto, que lhe mostra o caminho até o seu centro. É neste local onde Ofélia encontra aquele que lhe mostrará o caminho de volta: o Fauno. Neste primeiro contato já revela à Ofélia a verdade, que ela é uma princesa, Moanna, que não é filha de um homem. Seu pai abriu portais por todo o mundo, para permitir o seu regresso, sendo o labirinto em questão o último dos portais. No entanto, para que possa retornar, é preciso assegurar que a sua essência não foi perdida, que não se tenha tornado uma mortal. O Fauno entrega à Ofélia o livro das encruzilhadas. Que ao longo de sua jornada mostra para Ofélia suas três provas: (1) o sapo e a árvore: ajudar a árvore em que se aninhou um sapo para que ela volte a florescer e recuperar a chave dourada; (2) o homem pálido: cujo objetivo não é revelado, mas que se mostra posteriormente como a recuperação de uma adaga. Nesta prova, Ofélia deve obedecer a uma série de exigências, entre as quais está incluída a de não comer nada do banquete que encontrará servido, regra esta que, no entanto, Ofélia desobedece, o que, a princípio, é suficiente para que o Fauno afirme que ela não regressará mais ao mundo subterrâneo; (3) o irmão e a lua cheia (prova final): depois do nascimento do irmão e da morte da mãe de Ofélia a esperança já parece de todo desvanecida. Chega, no entanto a lua cheia e o fauno decide dar outra oportunidade para Ofélia e pede para que ela o obedeça. Pede para que Ofélia traga seu irmão até o labirinto, sem oferecer nenhuma outra instrução. Porém, quando Ofélia chega ao Labirinto, o Fauno afirma que é necessário o sangue de um inocente para que se possa abrir o portal e, no caso, o sangue de seu irmão. Ela não o entrega para o Fauno e sacrifica seu retorno pelo seu irmão mortal. Chega, então, o Capitão até o centro do labirinto, que perseguia Ofélia para recuperar o seu filho e atira nela após tomá-lo em seus braços. Ofélia morre e seu próprio sangue abre o portal. Ofélia, ou a princesa Moanna, finalmente retorna ao seu mundo. O sacrifício de derramar o próprio sangue ao invés de um inocente completa, assim, a última prova.

Retomaremos estes pontos quando da comparação com dois mitos antigos, que também descrevem a saga da alma humana.

3 comentários:

Fernanda disse...

É um filme fantástico, muito bom, apesar de não conseguir tocar a abrangência do mito... Mal posso esperar pelas próximas postagens!

"A princesa em questão passará por provas severas, antes de poder retornar ao seu mundo: essas provas são para que possa adentrar ao mundo ou para que ela própria possa relembrar a sua origem?"

Fernanda disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

E os comentários míticos?