domingo, 18 de agosto de 2013

Sobre a fluência em uma língua estrangeira

Ambientação: estou realizando um ano da minha pesquisa de doutorado nos Estados Unidos, após ter recebido a bolsa de doutorado sanduíche da Capes. Espero que o relato a seguir seja, ao mesmo tempo, reflexivo, útil e inspirador, em que pese sua origem em minha experiência pessoal. Especificamente, trato da sensação fantástica que é perceber a melhora significativa na fluência em Inglês.

o0.O.0o

O que é fluência em uma língua estrangeira? Sinceramente, não sei e não tenho formação técnica para explicar esse fenômeno. Tudo o que posso dizer é que hoje senti uma espécie de integração com o meio, que me fez perceber o quão importante para o nosso crescimento acadêmico e humano é um estágio de pesquisa no exterior.

Posso dizer, em primeiro lugar, que é uma sensação sutil, porque desde minha chegada, há pouco mais de três meses, tenho conversado em inglês com colegas de faculdade e/ou em pequenas conversas cotidianas. Senti, como toda pessoa que não tem o Inglês como língua materna, ausências de vocabulário, que teimam em vir em minha mente palavras em Português nas horas erradas e que, mesmo quando me esforço para falar o melhor Inglês possível, cometo aqui e ali alguns erros de gramática. O fato é que sempre volto para casa, penso alguns dias sobre as conversas que tive, em como eu poderia ter construído certa frase de modo gramaticalmente mais correto, treino a pronuncia correta das palavras, busco termos no dicionário e/ou na internet. Some-se a isso que, para o bom do desenvolvimento e conclusão de minha pesquisa de doutorado, tenho obviamente lido e fichado livros em Inglês.

Considero que o aconteceu de diferente hoje, quer em relação ao meu estudo formal em Inglês, quer em relação aos meus primeiros dias no exterior, foi a percepção da melhora em minha fluência, ou seja, que os assuntos sobre os quais queria tratar estavam bem representados por minhas palavras, que eu praticamente não pensei em Português para construir frases. O que posso dizer é que essa é uma sensação fantástica, algo próximo de um sentido de familiaridade, de integração com um meio que, até então, parecia estranho e mesmo um pouco assustador. Até certo ponto, é superar diferenças, encontrar uma porta de acesso ao desconhecido.

Então, em segundo lugar, a fluência em uma língua estrangeira parece-me ser também uma experiência de empoderamento. Linguístico, claro, mas principalmente humano, porque senti que parte de minhas ideias, que de certo modo pairavam latentes devido à falta de vocabulário (comparativamente com a minha língua materna), hoje puderam ser ouvidas e, espero eu, entendidas por meus ouvintes. Pude ser, assim, um pouco mais eu mesma, no sentido de que tratei tanto de assuntos sobre os quais venho estudando e pesquisando, sobre notícias do Brasil e do mundo, assuntos sobre os quais falo naturalmente em Português, mas que pareciam estar cobertos por uma barreira invisível que hoje, se não se dissipou totalmente, tornou-se ao menos mais translúcida.

Finalmente, queria dizer que a sensação de fluência é extremamente estimulante. Faz-me pensar como eu gostaria de ter morado/estudado no exterior quando era criança ou adolescente, para que hoje eu pudesse apresentar a mesma fluência não em uma língua estrangeira, mas em várias línguas estrangeiras. Formalmente, estudei não apenas o Inglês, mas também Espanhol, Francês e Alemão (e um pouco de Japonês), mas percebo que a diferença entre o estudo formal e isto que chamei de sensação de fluência está em que, independente dos diferentes backgrounds culturais de seus ouvintes, é possível fazer suas ideias serem ouvidas e entendidas, é possível também entender os outros e, quem sabe, perceber e entender um pouco melhor sobre si mesmo. Não é apenas ter lido sobre o fenômeno do bilinguismo, mas vivenciá-lo, quer pelo trânsito em diferentes mundos (entre o seu “mundo mental” e o do outro, entre o seu entorno cultural e o de outro país) quer pela “criação” de um mundo comum sobre o que se fala.

O que posso dizer para os meus amigos de pós-graduação que ainda não passaram pela experiência de estudo no exterior é que essa sensação de enriquecimento linguístico e humano apresentado pela fluência em uma língua estrangeira é muito interessante!

domingo, 4 de setembro de 2011

Fichamento: AUERBACH, E. A Cicatriz de Ulisses. In: _______. Mimesis: a representação da realidade na literatura Ocidental


Amigos,
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O texto a seguir foi apresentado em julho de 2011 como um dos requisitos para minha aprovação na disciplina Tendências e Leituras Críticas I, ministrada ao longo do primeiro semestre de 2011 no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP/SP.
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A experiência de ter participado dessa disciplina é indescritível. Os textos e os professores com que tive contato aumentaram a minha convicção sobre a importância do diálogo entre as humanidades, particularmente a história, a filosofia e a literatura.
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Espero que a leitura seja proveitosa, apesar de achar que a minha postagem não deva substituir a leitura do texto completo de Auerbach.
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oo.OoO.oo
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1) Texto fichadoAUERBACH, E. A Cicatriz de Ulisses. In: _______. Mimesis: a representação da realidade na literatura Ocidental. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2001. p.1-20.
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2) Resumo
Auerbach compara a passagem da cicatriz de Ulisses, presente no canto XIX da Odisséia com o relato do sacrifício de Isaac no Velho Testamento. A ideia que procura defender é a de que tais textos apresentam características diversas e que influenciam o modo de representação literária da realidade na cultura europeia. Considera que eles conformam estilos básicos. Por um lado, o homérico é caracterizado pela descrição modeladora, iluminação uniforme, ligação sem interstícios, locução livre, predominância do primeiro plano, univocidade, limitação quanto ao desenvolvimento histórico e quanto ao humanamente problemático; por outro lado, o estilo presente no Velho Testamento apresenta realce de certas partes em detrimento de outras, falta de conexão, efeito sugestivo tácito multiplicidade de planos, multivocidade e necessidade de interpretação, pretensão de universalidade histórica desenvolvimento da apresentação do devir histórico e profundamente problemático (cf. Auerbach, 2001, p. 19-20).
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3) Fichamento
Inicia o texto a partir do canto XIX da Odisséia em que Ulisses é reconhecido pela sua ama Euricléia. Auerbach observa na passagem as seguintes características: 1) descrição realizada com vagar, passando por comentário em que as mulheres (Euricléia e Penélope) comentam sobre seus sentimentos e, ainda assim, não faz com que os contornos da narrativa se confundam; 2) descrição do ambiente e dos objetos bem ordenada, fazendo com que homens e coisas permaneçam no espaço perceptível. Exemplo do incidente do reconhecimento de Ulisses pela ama, que toma quarenta versos antes e quarenta depois do momento mesmo de crise em que a governanta reconhece a cicatriz, descrevendo sua origem e não omitindo nenhuma das articulações que os eventos guardam entre si (cf. Auerbach, 2001, p. 2).
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O pensamento do leitor moderno a respeito de tal passagem se inclinaria para a consideração de que a estratégia narrativa indica que o autor quer provocar o aumento de tensão. No entanto, para Auerbach, a tensão não é o elemento decisivo para explicar o processo homérico, porque ela é débil nas poesias homéricas e não se destina a manter em suspenso o leitor ou ouvinte. Exemplo do episódio da caça, que descrito com amplidão e de modo amoroso, ganhando com isso o leitor. No entanto, o não preenchimento total do presente cria interpolação que faz aumentar a tensão pelo retardamento. Essa é outra característica homérica, pois o autor não conhece segundos planos, narrando sempre o presente e preenchendo a cena e a consciência do leitor (cf. Auerbach, 2001, p. 2-3).
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Informa que através de correspondência Goethe e Schiller tratam sobre o elemento retardador da poesia homérica, opondo-o ao princípio de tensão, mesmo que não o nomeassem dessa maneira nas cartas de 19, 21 e 22 de abril de 1797. Tal princípio de tensão é considerado próprio do processo épico. Auerbach concorda que tal elemento retardador, no entanto, alerta para o fato de que Goethe e Schiller elevaram o processo homérico à lei da poesia épica, contrastando-a com o trágico. Afirma, finalmente, que existem obras épicas antigas e modernas que não apresentam o elemento retardador, mas que são carregadas de tensão, roubando a liberdade emocional, que Schiller pretende conceder apenas ao poeta trágico. Desta maneira, Auerbach considera que a verdadeira causa da impressão do retardamento reside na necessidade de o estilo homérico em não deixar nada na penumbra ou inacabado (cf. Auerbach, 2001, p. 3).
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Analisa que a digressão sobre a origem da cicatriz não se diferencia de outros trechos, tais como aqueles em que uma personagem é introduzida na narrativa ou um apetrecho que aparece pela primeira vez, pois Homero os descreve em sua espécie e origem independente do momento específico da narrativa em que são introduzidos. Exemplo da cicatriz que surge no decorrer da ação, que vem claramente à luz revelando-se a juventude do herói. O mesmo impulso de representar fenômenos de modo acabado e visível é realizado quando da descrição de processos psicológicos. Exemplo de Ulisses que fala com os pretendentes quando começa a matá-los (cf. Auerbach, 2001, p. 4).
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Os fenômenos são descritos em primeiro plano no presente espacial e temporal, evitando a impressão de perspectiva através do uso de construções sintáticas comuns quando da introdução das interpolações. Exemplo do verso 393 em que se segue à palavra “cicatriz” uma oração relativa, que é expandida em parêntese sintático, no qual se introduz uma oração principal até que no verso 399 inicia um novo presente. Procedimento diferente desse seria o de uma ordenação em perspectiva, em que Ulisses recordasse da história da cicatriz. A questão é que esse processo subjetivo-perspectivista cria um primeiro e segundo planos, fazendo com que o presente se abra para o passado – estranho ao estilo homérico –, que faz da estória da cicatriz um presente independente e pleno (cf. Auerbach, 2001, p. 5).
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Comparação do estilo homérico com o relato do sacrifício de Isaac, na tradução de King Jones, em que na introdução já inicia com o diálogo entre Deus e Abrãao. Em que pese o leitor saber que os interlocutores não se acham no mesmo lugar terreno (cf. Auerbach, 2001, p. 5). Nada é explicado, não sendo discutida a causa de Abrãao ter sido tentado ou as motivações de Deus. Uma explicação possível para a diferença nos estilos está na singular noção divina dos judeus. Auerbach, porém, não a considera suficiente, pois além de causa é também sintoma do modo próprio de ver e representar (cf. Auerbach, 2001, p. 6). Outra incógnita é onde estaria Abrãao, já que a expressão “Eis-me aqui”, não indica o lugar real em que Abrãao se encontra, mas antes a sua posição moral em relação a Deus. Diferença exemplificada pela visita de Hermes à Calipso. No relato Bíblico nada é explicado a respeito dos interlocutores e tudo o que o leitor tem a disposição são as palavras breves e abruptas. Além disso, o lugar não é definido e, mesmo que imaginássemos Abrãao de braços abertos ou olhando para o alto, Deus não estaria lá, fazendo com que ele se dirigisse para um lugar indefinido e escuro, fora do primeiro plano em que lhe chega a voz (cf. Auerbach, 2001, p. 6-7);
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Após a introdução a ordem é pronunciada, inicia-se a narração sobre a viagem, que, no entanto, não é preenchida por detalhes. Até a chegada ao local em que se consumaria o sacrifício, revela-se apenas a sua duração que é de três dias. Somente a meta do sacrifício é revelada: Juruel, na terra de Moriá, não importando tanto a sua relação geográfica com outros lugares, mas sim a sua eleição realizada por Deus. A oferenda de Abrãao faz surgir a tensão opressiva, que Schiller procurava reservar ao poeta trágico, mas que se adéqua ao relato Bíblico, considerado por Auerbach épico (cf. Auerbach, 2001, p. 7-8).
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O mesmo contraste pode ser observado no discurso direito, mas no relato Bíblico o discurso tem a intenção de aludir algo que está implícito e inexpresso e não, como em Homero, a manifestação ou exteriorização de pensamentos. Deus ordena em discurso direto, porém cala os motivos, enquanto Abrãao emudece diante da ordem. A conversa entre Isaac e Abrãao a caminho do sacrifício interrompe o silêncio, mas, ao invés de esclarecer, apenas torna-o mais opressivo (cf. Auerbach, 2001, p. 8).
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Auerbach visualiza contrastes marcantes de estilo nesses dois textos antigos e épicos. Resumidamente: em Homero temos fenômenos acabados, uniformemente iluminados, definidos temporal e espacialmente, ligados entre si, sem interstícios e em primeiro plano. No relato Bíblico, por outro lado, só é acabado formalmente aquilo que interessa para a ação, sendo todo o restante relegado à escuridão. O que há entre os pontos de ação é o inconsciente, tempo e espaço permanecem indefinidos, precisando de interpretação, e pensamentos e sentimentos ficam inexpressos (cf. Auerbach, 2001, p. 9).
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O poema homérico apresenta em sua estrutura sensorial, linguística e sintática é mais elaborada, em que pese a sua perspectiva sobre o homem ser simples. À medida que acompanhamos a história, não somos acossados pela dúvida de sua verdade histórica, pois a realidade é forte e envolvente, criando um mundo que existe por si mesmo, sendo o leitor ou ouvinte introduzido nesse mundo, não havendo nenhum outro conteúdo senão ele próprio, sem sentidos ocultos, o que faz com que possamos analisar Homero, mas não interpretá-lo (cf. Auerbach, 2001, p. 10).
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Já nos relatos bíblicos a intenção não é o encantamento sensorial, sendo seu sucesso ético, religioso, interior concretizado na vida. Além disso, o narrador (Eloísta) tinha que acreditar na verdade objetiva da história da Abrãao, que pretende ser a única verdade, querendo, portanto, dominar. É justamente essa fusão de doutrina e promessa que dota a narrativa de caráter recôndito e obscuro, contendo segundo sentido oculto. O texto, então, torna-se carregado trazendo alusões sobre a essência de Deus e a atitude do homem piedoso (cf. Auerbach, 2001, p. 11-2).
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O relato Bíblico é mais exigente, pois não apenas requer interpretação, como também que suplantemos nossa realidade, inserindo-nos naquele mundo, fazendo-nos participando de sua estrutura histórico-universal, o que se torna cada vez mais difícil pelo afastamento de nosso mundo vital em relação ao das Escrituras, mesmo que estas mantenham a sua pretensão de autoridade. Cabe, então, uma transformação interpretativa (cf. Auerbach, 2001, p. 12), que, na Idade Média, era realizado pelo método exegético. Porém, despertada a consciência crítica, despreza-se o método exegético, convertendo os relatos Bíblicos em lendas (cf. Auerbach, 2001, p.13).
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O método exegético e sua pretensão de autoridade absoluta foi utilizada para outras tradições, que não a judaica. O poema homérico fornece um complexo de acontecimentos com delimitação temporal e espacial, incluindo facilmente complexos anteriores, coetâneos ou posteriores. Já o relato do Velho Testamento, por outro lado, oferece a história universal, no sentido de que começa com a criação do mundo e o início dos tempos e termina com o fim dos tempos, fazendo com que todo o mais que ocorre no mundo possa ser colocado como parte dessa estrutura, integrando-se ao plano divino. Por conseguinte, estando o Velho Testamento colocado no plano da realidade plena, fazendo com que seu conteúdo seja constantemente modificado, torando-o ativo na vida do homem na Europa (cf. Auerbach, 2001, p. 13).
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Outra característica é a de que o Velho Testamente é menos unitário que o relato homérico, mesmo que cada fragmento faça parte de contexto histórico-universal e interpretativo da história universal. Sendo assim, quando mais isolados são os relatos, tanto mais forte é a sua ligação vertical, que mantém todos juntos. Nas grandes figuras do Velho Testamento, desde Adão até os Profetas encarna-se essa ligação vertical, que Deus escolhera como encarnação de sua essência e vontade, sendo que a modelagem ocorre paulatinamente e de maneira histórica. No caso da história de Abrãao a modelagem envolve terríveis provas. Eis a diferença em relação às personagens homéricas, pois as grandes figuras do Velho Testamento são desenvolvidas, carregadas de sua história vital e caracterizadas por sua individualidade (cf. Auerbach, 2001, p. 14).
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Mesmo personagens como Aquiles e Ulisses, que são bem descritos, mencionando os seus epítetos e cujas emoções são manifestas em discursos e gestos, eles não possuem desenvolvimento na história de suas vidas, que é estabelecida univocamente. Mesmo no caso de Ulisses, que é a personagem que mais possibilitaria o desenvolvimento histórico-vital devido ao longo tempo narrado e a sequencia de acontecimentos. Mesmo seu envelhecimento físico é velado pelas intervenções de Atenéia, que o faz parecer velho ou jovem a depender do que requer cada situação (cf. Auerbach, 2001, p. 14).
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Além disso, os personagens homéricos estão mais sujeitos a oscilações pendulares, mesmo que os heróis sejam portadores da vontade divina, são eles também falíveis e sujeitos a desgraça e humilhação, através dessas últimas manifestando-se a sublimidade de Deus. Exemplo de Adão que sofre tanto a maior humilhação, e ainda assim outros heróis do Velho Testamento sofrem intervenção e inspiração pessoais de Deus. Por outro lado, o mendigo Ulisses é apenas um disfarce. Entretanto, oscilação pendular e intensidade da história pessoal estão e relação uma com a outra, pois quando da superação da situação extrema em que a personagem é colocada resulta intenso desenvolvimento (cf. Auerbach, 2001, p. 15).
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Diferença em relação a Homero, que permanece em seu relato como lendário, enquanto o assunto do Velho Testamento aproxima-se do relato histórico. Auerbach considera que a diferenciação entre lenda e história é facilmente reconhecido mesmo pelo leitor pouco experiente (cf. Auerbach, 2001, p. 15). Porém, dentro do relato histórico é mais difícil distinguir entre o verdadeiro e o falso ou o parcialmente iluminado, requerendo formação histórico-filológica. Isso ocorre porque a estrutura da lenda é diferente, mesmo quando não se denuncia diretamente pela presença de elementos maravilhosos, pela repetição de motivos conhecidos ou pelo desleixo na localização espacial ou temporal. Em sua estrutura, desenvolve-se de maneira linear, fazendo com que aquilo que ocorre transversalmente e com atrito seja secundário. A história que presenciamos ou que conhecemos pelo testemunho de contemporâneos, transcorre de modo menos uniforme, mais cheia de contradição e de confusão. Por outro lado, a lenda ordena o assunto de modo unívoco e decidido, destacando-a de sua relação com o mundo, que não pode intervir de modo perturbador. Conhece homens univocamente fixados com motivos simples e íntegros em seus sentimentos e ações, enquanto os objetos históricos em geral apresentam indivíduos com vários motivos, que são narrados por meio de simplificação (cf. Auerbach, 2001, p. 16).
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Por outro lado, boa parte dos livros de Samuel contém história e não lenda, mesmo que os relatos históricos tenham sido narrados com parcialidade, inicia aqui a passagem do lendário para o histórico, o que não acontece nas poesias homéricas, cuja tendência é a de harmonização aplainante do acontecido, a da simplificação de motivos e fixação estática dos caracteres. Abrãao, Jacó e até Moisés tem narrativas que se aproximam mais do concreto, porque a variedade confusa, contraditória e inibições internas e externas da história autêntica estão conservadas. O que, por sua vez, está relacionado a concepção judaica de homem e que os narradores tenham sido historiadores. E, como consequência dessa unidade da estrutura religiosa-vertical, não pode surgir conscientemente a divisão de gêneros literários. Auerbach interessa-se especialmente pelos relatos davidicos, por sua transição do lendário para o histórico. O Velho Testamento, assim, ocupado como está do acontecimento humano, domina três âmbitos: lenda, relato histórico e teologia histórica exegética (cf. Auerbach, 2001, p. 17-8).
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Com relação ao círculo de personagens homéricos, ele se apresenta mais limitado e estático. Além de Ulisses, Penélope, a ama Euricléia, uma escreva comprada pelo pai de Ulisses (Laerte), que passou a vida a serviço da família dos Laerte, compartilhado seus interesses e sentimentos. Eumeu recorda de ter nascido livre e pertencente a uma família nobre, mas, tal como Euricléia, não possui nem vida nem sentimentos próprios, estando atado aos senhores. Tais personagens, que são as únicas animadas por Homero, que não pertencem à classe senhorial, familiarizada com as atividades quotidianas da vida econômica, sendo ainda uma aristocracia feudal. Enquanto estrutura, esse mundo é completamente imóvel (cf. Auerbach, 2001, p. 18).
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Mesmo que no Velho Testamento a constituição patriarcal também seja predominante, como se trata de chefes de família isolados, nômades ou seminômades, o quadro social parece menos estável, não sendo observável a formação de classes. Exemplo do povo que, após a sua saída do Egito, é percebido por sua mobilidade, intervindo frequentemente nos acontecimentos. Além disso, dessa historicidade e mobilidade social também faz surgir conceito de estilo elevado e de sublimidade diferente do de Homero, já que este não receia inserir o quotidiano e realista no sublime trágico (cf. Auerbach, 2001, p. 18-9). Exemplo do reconhecimento da cicatriz e do lava pés estão inseridos na cena do retorno ao lar, o que ainda está longe da regra de separação dos estilos, que imporia que a descrição realista do cotidiano era inconciliável como o sublime. Entretanto, Homero é o que está mais próximo das regras que o Velho Testamento, pois o grande e o sublime ocorrem mais exclusivamente com membros da classe senhorial, mais estáveis em sua sublimidade do que os heróis do Velho Testamento (cf. Auerbach, 2001, p. 19).
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Finalmente a representação do caseiro em Homero permanece no idílico pacífico, enquanto nos relatos do Velho Testamento, o sossego da atividade cotidiana na casa, nos campos e junto aos rebanhos é minado em torno dos ciúmes e da eleição e à promessa de bênção, complicações que não são próprias do herói homérico. O motivo de inimizades entre os heróis homéricos são palpáveis, exprimíveis e resultam em luta aberta. Por outro lado, é o lento e constante fogo dos ciúmes, bem como a ligação entre o doméstico e o espiritual que impregnam o cotidiano de substância conflitiva, tornando o sublime e o cotidiano inseparáveis (cf. Auerbach, 2001, p. 19).
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O realismo homérico não pode, entretanto, ser equiparado ao clássico-antigo, pois a separação de estilos ocorrerá mais tarde, não permitindo a descrição minuciosa dos acontecimentos cotidianos. Apenas no realismo romano surgirão novas formas de ver as coisas, apesar de o estilo homérico terem vigorado até a mais tardia Antiguidade. Finalmente, ao assumir Homero e o Velho Testamento como estilos acabados, Auerbach não se refere às origens dos mesmos, deixando também de lado a se as peculiaridades são originais ou atribuíveis aos mesmos (cf. Auerbach, 2001, p.20).

domingo, 22 de maio de 2011

Sobre o uso de textos na internet como fonte bibliográfica para trabalhos escritos








O tema que tratarei nessa postagem pode ser considerado óbvio para os estudantes e pesquisadores familiarizados com as normas de publicação acadêmica. No entanto, não quero apresentá-lo como um tema novo ou velho, mas sim como objeto de reflexão. O tema proposto é o do uso de textos da internet como fonte para a produção de trabalhos escritos, comumente solicitados não apenas no meio acadêmico, como também para alunos do ensino fundamental e médio. Apresento primeiramente três riscos que corremos ao utilizarmos textos de internet inadvertidamente e depois forneço algumas dicas para o desenvolvimento da pesquisa bibliográfica, dicas estas que podem ajudar a apurar o nosso senso crítico em relação àquilo que lemos, o que, por sua vez, pode nos ajudar na produção de textos escritos melhores.
oO.o.Oo

1) Qualidade das fontes: quem já teve a experiência de fazer curso de pós-graduação com a exigência de apresentação de um trabalho final sabe que em grande parte a qualidade de seu trabalho escrito depende da qualidade das fontes utilizadas. Nas pós-graduações stricto sensu, ou seja, no mestrado e no doutorado, os trabalhos finais são chamados, respectivamente, de dissertação e tese. De modo simplificado, poderíamos afirmar que o objetivo desses trabalhos escritos é mensurar a capacidade do candidato em apresentar um tema ou problema, desenvolvê-lo e propor algum tipo de resposta para o tema ou problema tratado. É claro que em minha descrição estou me atendo aos trabalhos bibliográficos, tais como os apresentados pelas humanidades (filosofia, história, letras etc.), e não estou tratando de trabalhos que exigem uma parte laboratorial ou em campo, como é o caso de algumas pesquisas nas ciências naturais ou biológicas, ou mesmo em algumas pesquisas sociológicas.

Dado esse esclarecimento e voltando ao exemplo dos trabalhos de pós-graduação stricto sensu, antes mesmo de escrevê-los o aluno de pós-graduação apresenta um projeto, que nada mais é que a descrição do seu tema, problema, objetivos, etapas e cronograma de realização do trabalho. Além disso, cada pós-graduando tem um orientador, que é um pesquisador com mais experiência e que vai direcionar a pesquisa bibliográfica e fará a leitura crítica do seu texto escrito, para que o pós-graduando consiga ao final atingir o nível de qualidade exigido para sua aprovação. Considero que podemos extrair do exemplo dos trabalhos escritos em pós-graduação o seguinte: (1) os trabalhos escritos que produzimos são a expressão daquilo que apreendemos sobre o tema ou problema proposto como objeto de pesquisa. Então, devemos levar bastante a sério a pesquisa bibliográfica que fazemos para basear nosso trabalho, entre outras razões, porque outros pesquisadores nos avaliarão através daquilo que escrevemos; (2) o meio acadêmico propõe uma série de estratégias de pesquisa (a chamada metodologia) e de avaliação, que primam pela qualidade dos trabalhos escritos. Ter interesse na metodologia é também primar pela qualidade do nosso trabalho.

2) Respeito aos direitos autorais: no Brasil, temos uma legislação específica sobre Direitos Autorais, a Lei n. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998 (para ler na íntegra: http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L9610.htm). Podemos dizer que o objetivo da lei é duplo, pois ao mesmo tempo procura fixar a relação entre autor e obra e, por outro lado, procura evitar a comercialização da obra, sem o consentimento do autor. Não pretendo entrar aqui em especificações técnicas, que exigiria explicação mais ampla e referência a autores especialistas na área. O meu objetivo é o de mostrar que citar a fonte das ideias que você apresenta em um trabalho escrito não é apenas uma questão de "etiqueta" acadêmica, como também um reconhecimento de quem é o autor daquelas ideias. É claro que existem algumas ideias que nós mesmos produzimos a partir de nosso estudo, mas nesse momento estou tratando das partes de textos que utilizamos de outros autores. As regras da ABNT (mais informações em: http://www.abnt.org.br/), apontam como devemos fazer a referência aos autores que utilizados, mas basicamente existem formas textuais, ou seja, ao longo do nosso texto, sempre que utilizarmos ideias que não são nossas, indicar de quem são, a obra e a página de onde extraímos aquela passagem. Como afirmei, essa não é apenas uma questão de "etiqueta", mas uma tentativa de expressar de modo mais objetivo possível quando em nosso texto as ideias são de nossa autoria e quando as ideias são de autoria de outros pesquisadores ou autores. Finalmente, além do que chamei de formas textuais de citação de textos, também faremos referência ao autor nas "referências bibliográficas" ou simplesmente "bibliografia", elemento que está posicionado ao final de um trabalho escrito e que deve listar de modo exaustivo as obras utilizadas ao longo do texto.

3) Risco de plágio: esse item decorre dos dois anteriores. Ora, se entendo que o trabalho escrito é uma "vitrine" de minha produção intelectual e que nele posso utilizar ideias de outros autores, toda a vez que apresentar ideias que não são minhas em meus trabalhos escritos sem citar a fonte, posso ser acusado de plágio, ou seja, de estar apresentando como minhas ideias que na verdade não o são. As consequências de não citar a fonte das ideias que utilizamos em nossos trabalhos escritos podem ser sentidas tanto na avaliação que nossos orientadores ou membros da banca de avaliação farão, que pode ir desde a retirada de pontuação por não atendermos à regras básicas de metodologia, ao extremo de nossa reprovação. Daí que seja compreensível que os professores do ensino fundamental e médio usualmente orientem seus alunos a não simplesmente copiarem as ideias que eles leem, mas tentar expressar as ideias com suas próprias palavras. Expressar com as próprias palavras não é apenas trocar o que o autor está dizendo por palavras sinônimas. Por exemplo, o autor afirma "aquela manhã me lembrou uma situação na casa dos meus pais" e eu expresso aparentemente com minhas palavras a seguinte frase: "aquele dia recordou-me um acontecimento na cada de meus genitores". Esse é um exemplo de como não fazer bem o que o professor nos pediu. Outro modo, metodologicamente mais correto seria afirmar algo do tipo: "O autor afirma que aquele dia, trouxe à sua lembrança...". A diferença entre uma e outra frase que escrevi a partir da leitura do texto do autor pode inicialmente não parecer evidente, mas pelo menos no segundo caso estou deixando claro que a ideia não é minha e sim de outra pessoa.

Para combater os três riscos acima apontados, podemos considerar a seguinte metodologia de pesquisa. A primeira e talvez a mais importante, é nos certificarmos de quais são os comentadores realmente especializados nos autores ou assuntos sobre os quais precisaremos escrever. Apesar de eu particularmente considerar que o contato direto com o texto do autor seja igualmente relevante para que possamos formar nossos próprios juízos e reflexões sobre os temas tratados, não podemos esquecer que um pesquisador estude o mesmo tema ou autor há anos, provavelmente terá percepções mais acuradas que as minhas. Tanto que, para alguns, esse contato direto com o autor sem um preparo que poderia ter sido fornecido pelo especialista é um contato "selvagem" com o texto, que pode levar a um verdadeiro conjunto de conclusões equivocadas. Não sei se chegaria a tanto, mas concordo que a leitura de especialistas é imprescindível. Para o caso da internet, vale então a orientação geral de que temos que estar atentos ao autor, ou seja, ele é ou não especialista no assunto? O que não quer dizer que se ele não for especialista vai necessariamente dizer coisas erradas, mesmo porque essa orientação poderia se voltar contra meu próprio blog, uma vez que trato em forma de ensaio sobre vários assuntos sobre os quais não sou especialista. Mas, procuro deixar claro quando não conheço o assunto, sempre que possível apontando as fontes das ideias sobre as quais escrevo. Então, a recomendação continua sendo válida a meu ver.

Finalmente, tratando agora do tema da citação de textos da internet, vale a mesma regra geral para as demais textos. Caso a ideia que você apresente no seu texto escrito não seja sua, mas de algum autor que publicou suas ideias na internet, indique isso explicitamente no seu texto escrito. Acho que as duas únicas especificações que a citação de textos da internet possuem são as de que você tem que colocar o link onde o texto está publicado e, além disso, a data de acesso ao link que você está citando, dada a característica de instabilidade dos textos que são publicados na internet. Quero dizer, se compararmos com um livro impresso, os textos da internet são passíveis de modificação a qualquer momento ou mesmo de serem simplesmente extraídos, quando, por exemplo, um blog ou site é desativado. Sendo assim, posso apresentar como exemplo de uma boa referência à publicações de internet é o seguinte (digamos que estão tentando fazer referência a esse texto que escrevi no meu blog): "Aymoré, D. Sobre o uso de textos na internet como fonte bibliográfica para trabalhos escritos. Disponível em <http://humanidadesemdestaque.blogspot.com/2011/05/sobre-o-uso-de-textos-na-internet-como.html>. Acesso em 22 de maio de 2011" (apenas um detalhe, a data de acesso é a data em que você acessou o texto e não a data em que ele foi publicado no blog ou site).

sábado, 21 de maio de 2011

Ensaio filosófico sobre o tempo motivado pela fenomenologia de Sartre

O tempo pode ser percebido de formas diversas, pelo menos é o que podemos deduzir a partir não apenas de nossa experiência cotidiana, em que afirmamos em certos dias que “aqueles 30 minutos do final do expediente de trabalho, parecem passar mais lentamente que o restante do dia” ou ainda “o tempo voa quando estamos nos divertindo”. Assim, parece que de modo essencial, travamos com o tempo uma relação subjetiva, que poderia ser descrita como uma relação entre a consciência (que é o “sujeito” percebe) e o tempo (que é o “objeto” percebido). Ao contrário dos dois exemplos acima expostos, parece que quando olhamos o relógio e vemos que são 10:00h, esse tempo é um dado objetivo. Sabemos que temos que chegar ao nosso trabalho no horário certo, caso contrário poderemos dar causa à dispensa por justa causa. Mas, será que o tempo possui em si mesmo essa independência em relação aos nossos modos de percepção?
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De forma mais direta, poderíamos afirmar que o tempo é comumente percebido como sucessão, ou seja, como antes e depois, entre um dado momento, percepção ou experiência “A” e um dado momento, percepção ou experiência “B”. Daí que, por comparação entre momentos A e B e motivados pela memória residual que temos em relação a A (supondo, neste caso, que A apareceu primeiro à minha consciência que B), afirmamos que A apareceu antes que B, estabelecendo entre A e B uma relação não necessariamente causal, mas certamente de sucessão. No entanto, outra consciência que percebesse B antes de A, poderia afirmar, então, que foi A que sucedeu B, e não o contrário como inicialmente havíamos afirmado. Como consequência, poderíamos ficar em dúvida de se A ocorre efetivamente antes que B ou se essa sucessão depende do sujeito ou consciência que percebe.
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Sartre pensou a relação entre o tempo da consciência e o tempo real, exemplificados no primeiro parágrafo, respectivamente, com a percepção mais lenta ou mais rápida do tempo e a leitura dos ponteiros do relógio, tentando distinguir dois mundos: o mundo das imagens e o mundo real. No centro da relação entre os dois mundos, poderíamos dizer está a consciência, já que Sartre parte de uma perspectiva fenomenológica. No entanto, Sartre considera que tais mundos estariam separados, de tal modo que os objetos da consciência, ou seja, imagens e afetos seriam de outra natureza, distinta da dos objetos reais, estes sim sujeitos ao tempo e ao espaço. O mundo real possuiria, assim, suas próprias leis e os objetos, que são percebidos pela consciência, de modo ativo e construtivo, mas ainda assim os objetos reais sempre fornecem conhecimento novo, uma vez que toda percepção que temos é parcial e sintética.
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De modo simplificado, poderíamos afirmar que quando percebemos uma porta, formamos a imagem dela como fechada, aberta, que possui coloração marrom, pela percepção de que nela está presa a fechadura dourada etc. Depois, quando vem à nossa consciência a imagem que formamos da porta (que nesse caso é um objeto real, objetivamente dado), ela sempre virá de um modo particular, tornando a imagem da porta um objeto da consciência, sobre o qual podemos exercer a vontade, ou seja, podemos - na consciência - mudar sua cor, posição, torná-la maior, de outra cor etc., mas nunca teremos um conhecimento novo sobre a porta nessas condições, o que só ocorre com o contato mesmo com o objeto, na presença do objeto e na percepção presente, e não pela imagem, que Sartre denomina uma quase-observação.
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Como não conheço de modo profundo a fenomenologia de Sartre, não posso afirmar exatamente se ele resolve o problema da relação entre dois mundos concebidos como ontologicamente separados e que, no entanto, travam relações através da consciência. O que gostaria de comentar a propósito da temática do tempo é que a despeito de toda objetividade que nossa experiência cotidiana com a contagem do tempo pode nos sugerir, inclusive com a obrigação de pontualidade que temos em certas atividades, resta sempre nossa experiência subjetiva do mesmo, que, pelo menos em nossa consciência, leva a que através da memória (consciência voltada ao passado) ou da projeção (consciência voltada ao futuro) possamos vivenciar uma temporalidade menos material e mais flexível do que chamei de tempo objetivo. É assim que podemos nos lembrar dos entes queridos que faleceram ou de civilizações que há muito já não existem.
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Outro ponto que me pareceu relevante nas ideias de Sartre é que a formação de imagem que fazemos na consciência não é apenas uma espécie de retrato do objeto real, ou seja, uma representação tal e qual o objeto percebido. Ao contrário, toda formação de imagem abarca o elemento da perspectiva e também da emotividade, a saber, a consciência no momento que percebe o objeto atribui certas emoções, que relaciona à imagem. De tal modo que, uma pessoa que goste muito de bebês ou de gatos filhotes, sempre que lembrar em sua consciência de tais objetos anteriormente percebidos, terá imediatamente associado à imagem a emoção de ternura, que aqueles objetos provocaram nele uma ou mais vezes quando foram percebidos no mundo real. O mesmo se diga em relação àquilo que percebemos no mundo e que nos provoca medo, angústia ou nojo, por exemplo.
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Deste modo, permanece a questão em aberto, de se efetivamente o tempo apresenta uma objetividade intrínseca, ou se ele se apresenta às consciências de modos diversos, modos esses que abarcam não apenas diferentes perspectivas sobre os objetos, como também diferentes emoções relacionadas àqueles objetos. Tal assunto leva-me a outro, de viés mais literário do que filosófico, mas que deixarei em aberto para uma nova postagem.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Comentário de André Martins sobre Nietzsche, o filósofo da suspeita (Scarlett Marton)

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Achei interessante este comentário de André Martins sobre o livro Nietzsche, o filósofo da suspeita de Scarlett Marton.
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"O paradoxo de Nietzsche, que deve ser mantido por quem decide estudá-lo, é que a rigorosa exegese de seu texto se coaduna com a íntima convicção de que, nas palavras de Marton, “a filosofia não se identifica com um domínio específico do saber ou uma determinada área do conhecimento”, tampouco “com a arte de argumentar” ou “com uma reunião de idéias dogmáticas”. Conhecer Nietzsche implica no desafio de apreender a riqueza de sua contribuição ao mesmo tempo em que se leva a sério esta mesma contribuição no que a filosofia de Nietzsche se propõe a ser uma filosofia experimental, vivida, intensa, assistemática e criativa. E junto a isso, um pensamento coerente, de uma coerência que não se cola ao princípio de não-contradição em seu sentido formal, o que força o leitor a de fato entender o que está sendo dito. Neste mesmo sentido, Marton relembra ainda que Nietzsche não se limita a desconstruir os valores estabelecidos, mas se empenha na construção de uma nova visão de mundo, de uma nova maneira de valorar e de se afetar. Pensar com rigor, porém junto ao mundo, como parte da natureza e tomando parte na cultura, é o desafio que Nietzsche nos lega". (Para ler na íntegra: http://tragica.org/artigos/v3n2/andre.pdf).
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- Disponível em: Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche. Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº. 2, 2º Sem. de 2010 (http://www.tragica.org/lastedition/).

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Palestra PAE: O conhecimento como questão - o papel da epistemologia na formação superior

Salvador Dalí, "Galatéia das estrelas" (1952).
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A terceira palestra do PAE que publicarei em forma de postagem é O conhecimento como questão - o papel da epistemologia na formação superior, ministrada pela Profa. Dra. Sara Albieri, em 17 de novembro de 2010.
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O objetivo desta palestra é o de identificar o papel da epistemologia na graduação. Assim, a Profa. Sara Albieri inicia com a caracterização segundo a qual o ensino se separou em áreas, departamentos e disciplinas, afirmando que este fenômeno não é exclusivamente brasileiro. Há certa estranheza na forma de conceber a atividade, ocasionado pelo isolamento entre os departamentos o que ocorre mesmo nas humanidades. Originalmente, universidade estava relacionada com a universalidade, mas atualmente encontra percebe-se mais o elemento da especialização.
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Quanto ao elemento da interdisciplinaridade, a Profa. Albieri afirma que ela só é possível onde já há disciplinas estabelecidas, mas isso leva a questão de como fazer com que elas se comuniquem entre si. Aponta que mesmo as pesquisas de pós-graduação, quando propõem questões que levem ao cruzamento de fronteiras este é indesejado. O vago e genérico, porém, pode conter grandes questões que acabam não sendo tratadas na universidade. Historicamente, o papel desta conexão seria da filosofia. No século XVII houve migração para áreas. Na sua origem grega, Aristóteles se ocupava de diferentes assuntos, mas sua investigação era uma busca da verdade, diferenciando-se das questões práticas. A filosofia, assim, se atém ao inútil, no sentido de que não está ligada a utilidades práticas (presentes ou futuras) e que pode ser considerada uma marca distintiva de busca mais profunda.
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Até o século XVIII “filósofo” designava várias áreas, tal como a filosofia natural. Neste período, os termos filósofo e cientista não se diferenciavam, sendo, portanto, intercambiáveis. Não é o assunto que define, mas o modo como se aborda a investigação. Com os departamentos, conclui-se que o que os filósofos fazem é história da filosofia. Dando a impressão de que a filosofia se reduz à reconstrução do seu passado.
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A Profa. Albieri sugere uma revivência do modo como se trata a filosofia no Brasil, pois no exterior normalmente os estudos não se concentram em autores, e sim em áreas do conhecimento, não fazendo apenas a exegese, mas também transporta questões tratadas para o presente, discutindo questões tal como grandes autores já o fizeram. Estudam-se problemas e não autores, podendo ultrapassar limites de autores e de épocas a fim de explorar uma questão.
A seguir, Profa. Albieri afirma que tratará do problema da epistemologia na formação superior partindo desta perspectiva de problemas. Epistemologia, nome contemporâneo para teoria do conhecimento, era pensada com a perspectiva de que seria possível conhecer cientificamente o conhecimento, porém a teoria do conhecimento é anterior a esta cientifização. Primeiramente, tratava de estudo dos argumentos, sendo que a construção de qualquer teoria dependeria dos preceitos da boa epistemologia (arte de construir as estruturas). Como se o modo de produção de conhecimento pudesse ser estabelecido. Além dos que se apoiavam em lógica e em argumentos, havia os que se apoiavam na teoria cognitiva (condições de pensamento enquanto espécie). Assim, a epistemologia pode ser compreendida como fundamentação racional e, neste sentido, está relacionada à lógica e à epistemologia filosófica. Ou ainda ser compreendida como fundada na natureza humana, estando assim ligada ao organismo e às operações cognitivas.
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Estes dois caminhos continua tendo adeptos. A naturalização, por exemplo, está relacionada aos filósofos da mente, neurociência, relação mente-cérebro. Sendo que os que consideram a fudamentação racional estão ligados à lógica e à epistemologia filosófica (readotando o termo Teoria do conhecimento). Passa para a questão de como produzir conhecimento ainda interdisciplinar em sua essência:
- No ensino de graduação: a escolha do curso, já leva a especialidade. Mas, o excesso de especialização leva a danos (apesar de esta relação ser um pouco diferente no caso de alunos que já estão fazendo segundo curso universitário). Ideia de formação disvirtuada desde o ensino médio, sendo que na preparação para o vestibular já é voltado para questões práticas. Nem o ensino particular, nem o público cumprem com o aspecto da formação. Aluno que entra desta forma no ensino superior poderia resgatar a formação através do estudo da epistemologia.
- Epistemologia: aluno foi ensinado a ser um tecnicista (pragmático, eficiente), mas nem sempre foi estimulado ao pensamento crítico. Normalmente, o aluno tende a conversão dogmática para outras teorias, mesmo que críticas, pois continua não pensando criticamente por conta própria, o que o torna um conformista, no sentido de adequado ao grupo. Seria necessário que a epistemologia oferecesse as ferramentas necessárias para que o aluno pense por conta própria e não os resultados.
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Sendo assim, Profa. Albieri considera que não devemos adotar logo a crítica que é feita por terceiros, pois a relação de ensino funciona de modo mais eficiente aprimorando as formas de pensar, como os discursos se apresentam como verdadeiros e como argumentam neste sentido. É preciso aprender a formular boas perguntas, reconhecer a estrutura do argumento, colocando a discussão em base mais sólida e sadia. Também faz parte da formação acadêmica aprender a expor as ideias em apresentações públicas, escrever trabalhos, sem se concentrar tanto nas ideias dos autores através de fichamentos. Concluindo, apresenta a epistemologia como proposta de solução, desde que seja adotada nos diferentes cursos como disciplina obrigatória, já que ela perpassa todas as áreas acadêmicas, levando à perspectiva do conhecimento como problema a ser estudado.

Palestra PAE: Literatura, Cultura e História - implicações para o ensino






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A segunda palestra do PAE foi Literatura, Cultura e História - implicações para o ensino, ministrada pelo Prof. Dr. Daniel Puglia (FFLCH/USP), no dia 11 de novembro de 2010. Seguem os pontos principais da apresentação.
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O Prof. Daniel Puglia apresentou inicialmente a ideia de que a Literatura está intimamente relacionada com a cultura e também com disciplinas específicas. E que, a depender das relações estabelecidas, há restrição do conceito de cultura, que é uma consequência da divisão de trabalho. Por outro lado, os especialistas parecem saber mais sobre cada vez menos, o que tem como marco a passagem do século XIX para o século XXI, que teria transformado o conceito de literatura.
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Até o século XVIII há preocupação com quatro aspectos da Literatura: a) o caráter mimético, b) o caráter didático, c) o caráter expressivo e o d) caráter formal. O primeiro indica certa representação sobre o tempo em que a obra foi escrita; o segundo com o que se pretende com a obra; o terceiro com a expressão do autor e o quarto com a questão estilística. Primeiramente estes aspectos eram estudados em conjunto, mas a partir do capitalismo industrial e do romantismo nos séculos XVIII até XIX percebe-se ênfase no caráter expressivo. E, no século XX, no seu caráter formal.
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Além disso, é possível perceber uma mudança no conceito de literatura, pois ele foi reduzido e utilizado de forma ideológica, abordando especialmente grandes autores e obras (ligação imediata); porém, ao mesmo tempo, o elemento político foi reduzido (literatura de língua inglesa, mas com impactos também para as áreas universitárias, por exemplo, na consideração sobre o que ensinar). Também foi criada a ideia de que a literatura era mais rica que a experiência social e histórica. Há censura como no caso de que não entram nas discussões literárias as questões sobre a vida dos trabalhadores (até 1930 em Oxford e Cambridge, não se estudava Dickens o que só passou a ocorrer em 1950). Outro aspecto importante é que a literatura significa assumir valores que fazem com que se pertença a certa classe social devedora da ideologia burguesa. Não se fazia a separação com outros gêneros, como filosofia, história (havia, por exemplo, o debate de se o romance era literatura e mesmo se Shakespeare era literatura, pois o romance não se encaixava nos conceitos e estava em ascensão e o teatro não era considerado literatura). Mais importante que as categorias, são os assuntos sobre os quais a literatura pode tratar.
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Disto o Prof. Puglia passou para a análise de três pontos em que a literatura pode servir a determinada ideologia:
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1) Aprendizado para o gosto e a sensibilidade: campo definido por concepção de classe. Até o século XVIII há concepção universalista de literatura (oriundo da Igreja, que detinha a exclusividade do ensino), para a concepção burguesa – pertença à classe social. Ideia de cultura próxima a do vinho, no sentido de que também é cultivada por certa classe social. Tal comprometimento de classe leva a que algumas obras não sejam consideradas literatura, especialmente aquelas que falam do real. Apresenta-se uma crise no ensino da literatura, baseada na ideia de que não se pode aprender com a cultura, sendo o gênio individual mais importante que a construção social.
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2) Criação da superioridade da escrita imaginativa sobre as demais: consideração de que a imaginação é superior aos demais campos. Reação aos horrores do capitalismo industrial, fazendo com que a poesia tenha mais realidade que o mundo. Além disso, as pessoas são transformadas em mercadoria. Interessante notar que a Revolução Industrial em primeiro lugar mecanizou o processo de produção do algodão e depois passou para os livros. Assim, a arte e a literatura seriam guardiãs dos valores humanos. Existe uma lógica por trás, que está relacionada ao fato de que a burguesia começou como uma classe revolucionária e que queria propagar as qualidades humanas. No entanto, depois que consegue o poder político e econômico as qualidades humanas passam a ser preservadas.
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3) Criação da ideia de tradição na literatura: representação de nação e de nacionalidade para a literatura. Exclusões de certos autores, sendo o ponto comum a referência que fazem à história real e de seu país. Exemplo: Machado de Assis – redução da literatura à história é considerada problemática. Ao longo do século XX há fortalecimento destas tendências. Abandono do caráter mimético, didático, com ênfase na voz que fala.
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Finalmente, Prof. Puglia aponta como propostas o retorno dos quatro aspectos (mimético, didático, expressivo e formal). Além disso, que seja feita análise dialética das obras literárias, proposta esta de Aristóteles, sendo que em seu aspecto atual se mostra como descoberta de certa ideologia.
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Bibliografia Indicada:
EAGLETON, T. Teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2006.