segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Palestra PAE: O conhecimento como questão - o papel da epistemologia na formação superior

Salvador Dalí, "Galatéia das estrelas" (1952).
.
A terceira palestra do PAE que publicarei em forma de postagem é O conhecimento como questão - o papel da epistemologia na formação superior, ministrada pela Profa. Dra. Sara Albieri, em 17 de novembro de 2010.
.
0o.oOo.o0

.
O objetivo desta palestra é o de identificar o papel da epistemologia na graduação. Assim, a Profa. Sara Albieri inicia com a caracterização segundo a qual o ensino se separou em áreas, departamentos e disciplinas, afirmando que este fenômeno não é exclusivamente brasileiro. Há certa estranheza na forma de conceber a atividade, ocasionado pelo isolamento entre os departamentos o que ocorre mesmo nas humanidades. Originalmente, universidade estava relacionada com a universalidade, mas atualmente encontra percebe-se mais o elemento da especialização.
.
Quanto ao elemento da interdisciplinaridade, a Profa. Albieri afirma que ela só é possível onde já há disciplinas estabelecidas, mas isso leva a questão de como fazer com que elas se comuniquem entre si. Aponta que mesmo as pesquisas de pós-graduação, quando propõem questões que levem ao cruzamento de fronteiras este é indesejado. O vago e genérico, porém, pode conter grandes questões que acabam não sendo tratadas na universidade. Historicamente, o papel desta conexão seria da filosofia. No século XVII houve migração para áreas. Na sua origem grega, Aristóteles se ocupava de diferentes assuntos, mas sua investigação era uma busca da verdade, diferenciando-se das questões práticas. A filosofia, assim, se atém ao inútil, no sentido de que não está ligada a utilidades práticas (presentes ou futuras) e que pode ser considerada uma marca distintiva de busca mais profunda.
.
Até o século XVIII “filósofo” designava várias áreas, tal como a filosofia natural. Neste período, os termos filósofo e cientista não se diferenciavam, sendo, portanto, intercambiáveis. Não é o assunto que define, mas o modo como se aborda a investigação. Com os departamentos, conclui-se que o que os filósofos fazem é história da filosofia. Dando a impressão de que a filosofia se reduz à reconstrução do seu passado.
.
A Profa. Albieri sugere uma revivência do modo como se trata a filosofia no Brasil, pois no exterior normalmente os estudos não se concentram em autores, e sim em áreas do conhecimento, não fazendo apenas a exegese, mas também transporta questões tratadas para o presente, discutindo questões tal como grandes autores já o fizeram. Estudam-se problemas e não autores, podendo ultrapassar limites de autores e de épocas a fim de explorar uma questão.
A seguir, Profa. Albieri afirma que tratará do problema da epistemologia na formação superior partindo desta perspectiva de problemas. Epistemologia, nome contemporâneo para teoria do conhecimento, era pensada com a perspectiva de que seria possível conhecer cientificamente o conhecimento, porém a teoria do conhecimento é anterior a esta cientifização. Primeiramente, tratava de estudo dos argumentos, sendo que a construção de qualquer teoria dependeria dos preceitos da boa epistemologia (arte de construir as estruturas). Como se o modo de produção de conhecimento pudesse ser estabelecido. Além dos que se apoiavam em lógica e em argumentos, havia os que se apoiavam na teoria cognitiva (condições de pensamento enquanto espécie). Assim, a epistemologia pode ser compreendida como fundamentação racional e, neste sentido, está relacionada à lógica e à epistemologia filosófica. Ou ainda ser compreendida como fundada na natureza humana, estando assim ligada ao organismo e às operações cognitivas.
.
Estes dois caminhos continua tendo adeptos. A naturalização, por exemplo, está relacionada aos filósofos da mente, neurociência, relação mente-cérebro. Sendo que os que consideram a fudamentação racional estão ligados à lógica e à epistemologia filosófica (readotando o termo Teoria do conhecimento). Passa para a questão de como produzir conhecimento ainda interdisciplinar em sua essência:
- No ensino de graduação: a escolha do curso, já leva a especialidade. Mas, o excesso de especialização leva a danos (apesar de esta relação ser um pouco diferente no caso de alunos que já estão fazendo segundo curso universitário). Ideia de formação disvirtuada desde o ensino médio, sendo que na preparação para o vestibular já é voltado para questões práticas. Nem o ensino particular, nem o público cumprem com o aspecto da formação. Aluno que entra desta forma no ensino superior poderia resgatar a formação através do estudo da epistemologia.
- Epistemologia: aluno foi ensinado a ser um tecnicista (pragmático, eficiente), mas nem sempre foi estimulado ao pensamento crítico. Normalmente, o aluno tende a conversão dogmática para outras teorias, mesmo que críticas, pois continua não pensando criticamente por conta própria, o que o torna um conformista, no sentido de adequado ao grupo. Seria necessário que a epistemologia oferecesse as ferramentas necessárias para que o aluno pense por conta própria e não os resultados.
.
Sendo assim, Profa. Albieri considera que não devemos adotar logo a crítica que é feita por terceiros, pois a relação de ensino funciona de modo mais eficiente aprimorando as formas de pensar, como os discursos se apresentam como verdadeiros e como argumentam neste sentido. É preciso aprender a formular boas perguntas, reconhecer a estrutura do argumento, colocando a discussão em base mais sólida e sadia. Também faz parte da formação acadêmica aprender a expor as ideias em apresentações públicas, escrever trabalhos, sem se concentrar tanto nas ideias dos autores através de fichamentos. Concluindo, apresenta a epistemologia como proposta de solução, desde que seja adotada nos diferentes cursos como disciplina obrigatória, já que ela perpassa todas as áreas acadêmicas, levando à perspectiva do conhecimento como problema a ser estudado.

Palestra PAE: Literatura, Cultura e História - implicações para o ensino






.
A segunda palestra do PAE foi Literatura, Cultura e História - implicações para o ensino, ministrada pelo Prof. Dr. Daniel Puglia (FFLCH/USP), no dia 11 de novembro de 2010. Seguem os pontos principais da apresentação.
.
o0.oOo.0o
.
O Prof. Daniel Puglia apresentou inicialmente a ideia de que a Literatura está intimamente relacionada com a cultura e também com disciplinas específicas. E que, a depender das relações estabelecidas, há restrição do conceito de cultura, que é uma consequência da divisão de trabalho. Por outro lado, os especialistas parecem saber mais sobre cada vez menos, o que tem como marco a passagem do século XIX para o século XXI, que teria transformado o conceito de literatura.
.
Até o século XVIII há preocupação com quatro aspectos da Literatura: a) o caráter mimético, b) o caráter didático, c) o caráter expressivo e o d) caráter formal. O primeiro indica certa representação sobre o tempo em que a obra foi escrita; o segundo com o que se pretende com a obra; o terceiro com a expressão do autor e o quarto com a questão estilística. Primeiramente estes aspectos eram estudados em conjunto, mas a partir do capitalismo industrial e do romantismo nos séculos XVIII até XIX percebe-se ênfase no caráter expressivo. E, no século XX, no seu caráter formal.
.
Além disso, é possível perceber uma mudança no conceito de literatura, pois ele foi reduzido e utilizado de forma ideológica, abordando especialmente grandes autores e obras (ligação imediata); porém, ao mesmo tempo, o elemento político foi reduzido (literatura de língua inglesa, mas com impactos também para as áreas universitárias, por exemplo, na consideração sobre o que ensinar). Também foi criada a ideia de que a literatura era mais rica que a experiência social e histórica. Há censura como no caso de que não entram nas discussões literárias as questões sobre a vida dos trabalhadores (até 1930 em Oxford e Cambridge, não se estudava Dickens o que só passou a ocorrer em 1950). Outro aspecto importante é que a literatura significa assumir valores que fazem com que se pertença a certa classe social devedora da ideologia burguesa. Não se fazia a separação com outros gêneros, como filosofia, história (havia, por exemplo, o debate de se o romance era literatura e mesmo se Shakespeare era literatura, pois o romance não se encaixava nos conceitos e estava em ascensão e o teatro não era considerado literatura). Mais importante que as categorias, são os assuntos sobre os quais a literatura pode tratar.
.
Disto o Prof. Puglia passou para a análise de três pontos em que a literatura pode servir a determinada ideologia:
.
1) Aprendizado para o gosto e a sensibilidade: campo definido por concepção de classe. Até o século XVIII há concepção universalista de literatura (oriundo da Igreja, que detinha a exclusividade do ensino), para a concepção burguesa – pertença à classe social. Ideia de cultura próxima a do vinho, no sentido de que também é cultivada por certa classe social. Tal comprometimento de classe leva a que algumas obras não sejam consideradas literatura, especialmente aquelas que falam do real. Apresenta-se uma crise no ensino da literatura, baseada na ideia de que não se pode aprender com a cultura, sendo o gênio individual mais importante que a construção social.
.
2) Criação da superioridade da escrita imaginativa sobre as demais: consideração de que a imaginação é superior aos demais campos. Reação aos horrores do capitalismo industrial, fazendo com que a poesia tenha mais realidade que o mundo. Além disso, as pessoas são transformadas em mercadoria. Interessante notar que a Revolução Industrial em primeiro lugar mecanizou o processo de produção do algodão e depois passou para os livros. Assim, a arte e a literatura seriam guardiãs dos valores humanos. Existe uma lógica por trás, que está relacionada ao fato de que a burguesia começou como uma classe revolucionária e que queria propagar as qualidades humanas. No entanto, depois que consegue o poder político e econômico as qualidades humanas passam a ser preservadas.
.
3) Criação da ideia de tradição na literatura: representação de nação e de nacionalidade para a literatura. Exclusões de certos autores, sendo o ponto comum a referência que fazem à história real e de seu país. Exemplo: Machado de Assis – redução da literatura à história é considerada problemática. Ao longo do século XX há fortalecimento destas tendências. Abandono do caráter mimético, didático, com ênfase na voz que fala.
.
Finalmente, Prof. Puglia aponta como propostas o retorno dos quatro aspectos (mimético, didático, expressivo e formal). Além disso, que seja feita análise dialética das obras literárias, proposta esta de Aristóteles, sendo que em seu aspecto atual se mostra como descoberta de certa ideologia.
.
Bibliografia Indicada:
EAGLETON, T. Teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Palestra PAE: A formação do professor universitário - desafios e perspectivas



Caros,
.
.
Este programa é voltado para os alunos da pós-graduação, que prevê duas fases de sua realização: a primeira fase chama-se Preparação Pedagógia e a segunda Estágio Supervisionado. Sendo o objetivo do PAE aprimorar a formação do pós-graduando para a atividade didática de graduação.
.
Para mais infomações: http://www.fflch.usp.br/pos/.
.
Participei, assim, da fase de Preparação Pedagógica, que contou com total de cinco palestras das quais participei de três. Gostaria de compartilhar com vocês o conteúdo destas palestras, pois as discussões empreendidas podem ser úteis para todos. A primeira palestra A formação do professor universitário - desafios e perspectivas foi ministrada pela Profa. Dra. Helena Chamliam (FE/USP), no dia 10 de novembro de 2010. Seguem os pontos principais da apresentação.
.
0o.O0O.o0
.

A Profa. Dra. Helena Chamliam adotou nesta apresentação a perspectiva do professor na sala de aula, questionando-se como (didática) e o que ensinar (conteúdo, que pode ser abordado por níveis e áreas de conhecimento). Informa também que pesquisas recentes no curso de medicina mostraram como os alunos avaliam seus cursos, entendendo Chamliam que algumas questões levantadas poderiam ser estendidas aos demais cursos.
.
Na pesquisa em questão, os alunos de medicina apontaram como pontos que consideram positivos no docente, sendo eles: a didática, o conteúdo, a boa relação entre professor e alunos, o compromisso com o ensino, a atualização e a postura ética. Por outro lado, os mesmo alunos apontaram como pontos negativos o docente que não domina os conteúdos, a falta de didática, a arrogância, a desatenção em relação ao aluno, a falta de pontualidade e de assiduidade, a desatualização, a pouca interação com os alunos, o desinteresse pela docência, a alteração de humor e a ausência de cordialidade.
.
A questão seria analisar até que ponto esta postura observada pelos alunos em relação aos docentes seria fruto de uma efetiva má-vontade de seus docentes em relação à atividade em sala de aula ou seria resultado das próprias pressões institucionais sofridas por este profissional do ensino. Desta forma, Chamliam passa de uma perspectiva a partir da sala de aula para a perspectiva institucional.
.
Antes, porém, é necessário distinguir entre Universidade e Ensino Superior. Para esta tarefa, Chamliam se utilizou da distinção apontada por Bireaud (1994). Bireaud na obra Os métodos pedagógicos no ensino superior, fornece, em primeiro lugar, a distinção temporal, pois enquanto Universidade data deste o século XII, Ensino Superior é expressão mais recente, utilizada especialmente a partir do século XX, significando a organização dos sistemas de ensino em níveis hierarquizados. Assim, Universidade estaria contida no sentido de Ensino Superior. Em segundo lugar, Bireaud aponta para as várias transformações que a Universidade sofreu, fazendo com que o próprio termo signifique certo mito (ligado ao conhecimento de todas as disciplinas), já Ensino Superior implica a dualidade entre massificação e especialização do conhecimento. Desta maneira, dependendo da concepção que se tem, se a de Universidade ou a de Ensino Superior, a formação poderá receber um ou outro contorno.
.
Chamliam passa, assim, para quatro tipos de formação que pode ser atribuída ao Ensino Superior, tal como discriminadas por Kouganoff (1969), sendo eles: (1) formação para capacitação profissional; (2) formação de docentes para todos os níveis escolares; (3) formação de pesquisadores; (4) formação cultural. Enquanto a primeira, relativa à capacitação profissional está mais ligada às necessidades econômico-sociais, a quarta é necessária para nossa adaptação às mudanças aceleradas que nosso mundo contemporâneo vem sofrendo, apesar de tipo de formação estar perdendo velocidade no Ensino Superior. No caso do Brasil, Chamliam aponta os anos 60 e 70 (século XX) como relevantes para observação de como os cursos reagiram a estas transformações no sentido de formação, pois muitos currículos foram alterados neste período.
.
Tais mudanças na formação podem, por sua vez, refletir diferentes modelos pedagógicos. Bireaud afirma que o modelo pedagógico tradicional pressupõe a indissociabilidade entre ensino e pesquisa, sendo que no Brasil a criação da USP teve como fundamento esta perspectiva. Ensino, neste caso, é qualificado pela pesquisa. Mas, a criação das pós-graduações levou a que a parte da pesquisa fosse redirecionada, saindo das atividades próprias da graduação, onde ensino e pesquisa encontram-se dissociados (marco temporal na década de 70).
.
Inicialmente, assim, o ensino encontra a sua legitimidade em si própria, pois está baseado na pesquisa, apesar de esta relação ser mais organizada no caso das ciências. Nestas áreas, a avaliação exerce a função de legitimação em vista da continuidade do conhecimento produzido na pesquisa. Porém, este método apresenta sinais de degradação, devido ao excesso de alunos em sala de aula, a multiplicação dos interesses e das formações almejadas por eles, o que, em última análise, prejudica o ensino proporcionado.
.
Um caminho para a modificação desta degradação do ensino é repensar as atribuições da universidade. Chamliam, neste ponto, recorre a dois autores: Boaventura de S. Santos e Marilena Chauí. Quanto à Santos (1897), este condirá como atribuições da universidade: 1) a educação geral pós-secundária; 2) a investigação; 3) o fornecimento de mão de obra qualificada; 4) a educação e treino altamente especializados; 5) o fortalecimento da competitividade da economia; 6) a mobilidade social para filhos e filhas dos operários; 7) a prestação de serviços à região e à comunidade local; 8) paradigmas de aplicação de políticas nacionais; 9) preparação para os papéis de liderança nacional. Como se pode observar, as demandas são múltiplas e a universidade tenta se adaptar a todas elas.
.
Seriam, portanto, desafiadores para a universidade as características do público e a quase universalização do Ensino Superior. Observa-se crescimento do número de instituições de Ensino Superior e, fundamentalmente, o aparecimento de dois tipos de alunos: aqueles que têm efetivamente interesse pela academia (estudante profundo, como denomina Bireaud) e aqueles que consideram aquele estudo mais uma fase da educação compulsória (estudante superficial, segundo Bireaud). Além disso, há instituições atualmente em especial voltadas para a formação profissional, dissociando, portanto, ensino e pesquisa. Outro problema a ser enfrentado é a demanda por cotas, pois elas partem de reivindicações sociais, que também atingem a universidade. Em que pese esta pluralidade de demandas, parece característico do sistema, ir além da diferenciação entre os tipos de alunos e provocar uma dissociação institucional. De um lado, temos as instituições voltadas para a formação profissional e que exigem produtividade dos professores (número de alunos aprovados, número de aulas etc.), sendo que provoca perda da autonomia do professor (programa de aulas já é dado, sem que haja ênfase no aperfeiçoamento). Já são instituições que nascem e realizam a dissociação entre ensino e pesquisa.
.
Há, assim, a necessidade de discussão dos currículos entre os próprios docentes, devido ao aumento das pressões, pela exigência que um mesmo docente esteja apto ao ensino, pesquisa, extensão e administração acadêmica. Neste sentido, Marilena Chauí trata da Terceira fundação da universidade, sugerindo o ensino como parte do processo de surgimento do sujeito de conhecimento. Para alcançar a qualidade acadêmica, esta autora considera necessária a iniciação aos clássicos, aos problemas e às inovações, com variação e atualização dos cursos, bem como a iniciação aos estilos e técnicas de produção do conhecimento. Sendo assim, o professor deve informar e formar os seus alunos, forçando-os ao estudo de línguas estrangeiras, lutando por condições de infraestrutura, exigindo trabalhos escritos e orais e, finalmente, incentivando diversos tipos de talentos, através da recomendação de trabalhos.
.
Para concluir, Chamliam aponta como perspectivas o próprio PAE (Programa de Aperfeiçoamento de Ensino), que primeiramente foi aplicado apenas como estágio, em que os pós-graduandos podiam oferecer disciplinas optativas para os alunos da graduação, sendo posteriormente incluída a fase da preparação pedagógica. Mas, de modo geral, considera que este é um momento oportuno para a reflexão sobre os aspectos implícitos da atuação docente, para que haja a possibilidade de uma autoformação, no sentido de que cada qual recupere a sua formação e que a apresente como projeto para si mesmo e, posteriormente, para a docência.
.
Bibliografia Indicada:
BIREAUD, A. Os métodos pedagógicos no ensino superior. Lisboa: Porto editora, 1995.
CHAUÍ, M. USP 94: A terceira fundação. Estudos Avançados 22.
KOURGANOFF, V. A face oculta da universidade. São Paulo: Editora da UNESP, 1990.
SANTOS, B. de S. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 4 ed. São Paulo: Cortez, 1997.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Palestra na ANPOCS: A imagem do desenvolvimento da ciência, Parte 2

Caros, em primeiro lugar, peço desculpas pela demora em postar a segunda parte da minha palestra. Espero que aceitem a justificativa de que estive realmente muito ocupada, ou que eu planejei mal o meu tempo. De qualquer modo, esta postagem é uma continuação da Palestra na ANPOCS: A imagem do desenvolvimento da ciência, Parte 1, que pode ser acessada e lida conforme o interesse de cada um. Naquela primeira oportunidade, apenas contextualizei de modo geral o evento em que a minha palestra se inseria, apresentei a proposta geral da mesma, porém deixei questões relativas propriamente ao conteúdo da palestra para esta segunda parte. Uma informação importante é que o título completo da apresentação que me coube é A imagem do desenvolvimento da ciência: uma abordagem kuhniana da atividade científica e foi ministrada nos dias 25 e 26 de outubro de 2010 em Caxambu, Minas Gerais.
.
oo.OoO.oo
.
Como o subtítulo da palestra sugere, o objeto desta apresentação são as ideias sobre a atividade científica de Thomas S. Kuhn (1922-1996), que, físico de formação, passou a se dedicar à história e à filosofia da ciência. Kuhn, autor que escreve suas obras no ainda bastante próximo século XX, obteve a sua graduação em Física (Harvard) no ano de 1943, obtendo na mesma instituição a sua pós-graduação também em física entre os anos de 1946 e 1949. Já em 1949 começou a dar aulas para a graduação sobre ciência. Em 1957 escreve a sua primeira obra propriamente de história da ciência, chamada A revolução copernicana. Mas, é no ano de 1962, que Kuhn publica a obra que terá um grande impacto e repercussão nos meios acadêmicos, que é A estrutura das revoluções científicas (doravante Estrutura). Kuhn afirma que a ideia de escrevê-la surgiu 15 anos antes de sua publicação, período, portanto, em que realizava a sua pós-graduação. O resultado das pesquisas que Kuhn realizou levou-o a mudança drástica nos seus interesses da física para a história da ciência e da história da ciência para a filosofia da ciência.
.
Kuhn dialoga na Estrutura com o que denomina o modo tradicional de análise da ciência, que sugere que o desenvolvimento da ciência ocorre por acumulação de conhecimento e busca um método único capaz de demarcar o conhecimento que pode ser legitimamente considerado científico. Desta maneira, esta perspectiva tradicional da ciência, recorre ao passado da mesma apenas na medida em que é útil para justificar o estado atual de leis e de teorias científicas, compreendendo que os conhecimentos e técnicas de produção da ciência contemporâneos são melhores dos que os do passado. Exemplo deste modo de analisar a ciência é a história que visa os precursores, ou seja, aqueles autores do passado que influenciaram direta ou indiretamente ideias contemporâneas. Kuhn considera que, na verdade, o modo tradicional de análise da ciência, comete o equívoco de retirar teorias científicas e seus autores dos seus contextos de formação e, portanto, trata a ciência de uma maneira a-histórica. O estudo bibliográfico da ciência realizado por Kuhn mostrou justamente que esta perspectiva era no mínimo parcial.
.
A parcialidade do modo tradicional de análise da ciência estava em que, segundo Kuhn, o desenvolvimento da ciência apresenta não apenas momentos de acumulação de conhecimento, mas também momentos de ruptura com esta acumulação. E, justamente estes momentos de ruptura, ocorrem devido a mudança de métodos de pesquisa científica, conceito este que será alargado por Kuhn que, conforme veremos a seguir, considera que a ciência possui paradigmas e não apenas uma metodologia segundo a qual investiga seus objetos. Assim, Kuhn propõe a chamada nova história da ciência, que defende momentos de acumulação e de ruptura de conhecimento, bem como procura recolocar a ciência no tempo e no seu contexto próprio de realização, ou seja, procura compreender o desenvolvimento da ciência na sua história. Para realizar esta nova história da ciência Kuhn cria novo conjuto de conceitos a respeito do que é a ciência e de como ocorrem as mudanças na mesma, procurando a chamada história real, no sentido daquilo que efetivamente aconteceu.
.
Por mais que Kuhn discordasse das conclusões da história tradicional da ciência, ele reconhece que ela trabalha com determinadas fontes para a partir delas fazer afirmações sobre a ciência. Kuhn observa que as fontes que normalmente são utilizadas pela história tradicional são os manuais científicos, os textos de divulgação científica e as obras filosóficas. Vale dizer, que nestas três formas de apresentar a ciência possuem objetivos eminentemente persuasivos e pedagógicos, apresentando um conceito de ciência diferente daquele que surge do estudo histórico mais profundo da ciência. No caso dos manuais científicos, como toda obra que visa formar especialistas em determinada área, eles se concentram nas teorias contemporâneas. Os textos de divulgação, por sua vez, precisam elaborar para uma linguagem familiar, teorias que são extremamente especializadas. E, as obras filosóficas, partem de generalizações como aquelas elencadas da acumulação de conhecimento e de que a ciência de todas as épocas podem ser reconhecidas pelo método que utilizam, sendo este sempre o mesmo.
.
Por sua vez, a nova história da ciência, mesmo que fazendo uso das mesmas fontes, as encara a partir de perspectiva diferente. Em primeiro lugar, considera importante a prática científica efetiva. Em segundo lugar, dota a ciência de fases de desenvolvimento que podem ser de ciência normal ou de ciência extraordinária, em ambos os casos apontando a importância dos paradigmas para a compreensão da ciência. E, em terceiro lugar, afirma a existência de revoluções científicas, ou seja, momentos em que há mudança brusca dos pressupostos segundo os quais os cientistas realizam a sua atividade de pesquisa. Podemos adotar como primeira conceituação do termo "paradigma", que ele é um conjunto de suposições e padrões aceitos com base em uma realização científica importante e que determina a prática científica posterior. Kuhn oferece como exemplo de paradigma a Óptica e a Mecânica newtoniana. Porém, conforme veremos a seguir, Kuhn considera que um ramo do saber não nasce uma ciência, ele, na verdade, se faz ciência ao longo de sua história. É preciso, portanto, observar a transformação de um estado para o outro.
.
Kuhn afirma que existem fases do desenvolvimento da ciência, que vão desde o período pré-paradigmático, ou seja, em que observamos a discussão sobre os objetos, os métodos e os problemas de uma determinada disciplina. No caso, ainda não se tem propriamente uma ciência, porque falta o consenso em torno do objeto de investigação. Neste sentido, é possível afirmar que o período paradigmático é, segundo Kuhn, caracterizado por pluralidade de escolas, por discussão e discordância sobre os fundamentos da ciência, por dificuldade de determinar as observações relevantes e, finalmente, por discordância sobre teorias, métodos e instrumentos de pesquisa. Assim, o que marca qualitativamente a passagem de uma disciplina para uma ciência propriamente dita é a adoção de paradigma único, a partir do qual os cientistas verão os seus objetos de estudo, serão capazes de realizar as suas pesquisas e de comunicarem entre si os resultados de modo não-problemático. Outra característica importante do período paradigmático é, contrariamente, a possibilidade de ocorrência das revoluções científica.
.
As revoluções científicas, então, podem ser compreendidas como aqueles momentos em que a ciência substitui um paradigma por outro, o que leva a conjunto distinto de supostos da investigação científica. A partir da aplicação contínua de um paradigma, os cientistas podem obter situações não abarcadas pelo mesmo, ou seja, como se a realidade não se comportasse do modo como prevê a teoria, fazendo com que aos poucos vá se perdendo a confiança em relação à capacidade do mesmo de fazer com que a pesquisa realmente obtenha resultados. Kuhn denomina o momento de desconfiança em relação ao paradigma e da busca de solução de problema aparentemente insolúvel a partir do mesmo de crise. Semelhantemente ao que ocorre nos períodos de crise política, os debates profundos sobre o paradigma que ocorrem no período de crise, preparam os cientistas para a busca e possível adoção de um novo paradigma. Caso efetivamente a comunidade científica decida que outro paradigma é melhor para a pesquisa e o adotem como padrão, estaremos diante de uma revolução científica.
.
Evidentemente, alguns problemas podem ser colocados para a proposta kuhniana de nova história da ciência. Considero que a mais importante seria a seguinte: o conceito de paradigma se aplica igualmente para todas as ciências? Levando em consideração, neste caso, as ciências humanas, sociais e exatas. Exemplo relevante desta discussão seria nos perguntarmos se a Sociologia é caracterizada por um paradigma único e, por conseguinte, é uma ciência madura em sentido kuhniano, ou se ela é caracterizada por uma pluralidade de escolas e, deste modo, uma disciplina ainda em estado pré-paradigmático para Kuhn. Apesar deste questionamento, gostaríamos que ao final desta apresentação, algumas ideias fossem levadas em consideração como relevantes na proposta kuhniana: a primeira é sem dúvida a mais importante, que é justamente aceitarmos a ideia de que a ciência precisa ser analisada como um objeto histórico, estando sujeita a mudanças a depender do período considerado. A segunda questão é que a educação paradigmática torna predominante certos modos de realizar a pesquisa científica, consequentemente, qualquer mudança na imagem de ciência predominante passa pela análise crítica de tradições anteriores.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Comunicação XIV ANPOF - Thomas Kuhn e a historiografia não-factual da ciência




A comunicação a seguir foi apresentada em 07 de outubro de 2010, no evento XIV Encontro Nacional da ANPOF - Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (Águas de Lindóia, São Paulo). Esta comunicação é resultado do estudo de mestrado defendido no primeiro semestre de 2010, que realizei sobre a historiografia da ciência de Thomas Kuhn. O título completo da minha dissertação de mestrado em filosofia é O modelo da historiografia da ciência kuhniano: da obra a estrutura das revoluções científicas aos ensaios tardios e está totalmente disponível em versão digitalizada no seguinte endereço eletrônico:
.
oo.OoO.oo
.
A apresentação a seguir está dividida em três partes: 1) Apresentação das linhas gerais da historiografia da ciência de Thomas Kuhn; 2) A analogia que Kuhn estabelece entre a atividade do cientista e a atividade do historiador em suas ideias historiográficas; 3) A questão da carga teórica e como ela é aplicada analogamente ao caso da história da ciência; e, finalmente, partiremos para as nossas considerações finais.
.
Como o título de nossa apresentação já pode elucidar, nossa perspectiva é teórica. E, de modo ainda mais preciso, procuraremos mostrar que é possível retirar dos escritos kuhnianos uma teoria sobre a atividade histórica da ciência. Neste sentido, faremos, então, um metadiscurso, que se apoia nos textos de Kuhn, em especial A tensão essencial e A estrutura das revoluções científicas, para mostrar que este autor tem uma teoria da história que embasa sua análise do desenvolvimento da ciência. Porém, a proposta desta comunicação é mais modesta do que mostrar todo o sistema historiográfico deste autor, por pretendemos nos concentrar em um dos pontos da historiografia da ciência kuhniana, ou seja, especificamente quando a que este autor informa sobre a relação do historiador da ciência com as fontes que tem a sua disposição para realizar a narrativa histórica.
.
Antes de adentrarmos propriamente no conceito e caracterização de história factual e não-factual, gostaríamos de contextualizar nossa análise. Nesta contextualização, apresentaremos a distinção que Kuhn observa entre as disciplinas história, filosofia e ciência, posteriormente nos concentrando na relação entre história e filosofia, haja vista a importância desta relação para a atividade do historiador da ciência. Sendo assim, no texto As relações entre a filosofia e a história da ciência (A tensão essencial, 1989) Kuhn informa que iniciou sua reflexão sobre as diferenças e semelhanças entre as disciplinas a partir da sua experiência docente em turma formada tanto por alunos da graduação em história, como por graduandos em filosofia. Observou que mesmo que seus alunos estivessem empenhados em ler e em comentar sobre os mesmos textos de história da ciência, sua postura e tipo de relação com o autor e com a obra era suficientemente distinta para que Kuhn visualizasse diferenças disciplinares, somando a estas a sua experiência pessoal como graduando e pós-graduando em física.
.
Assim, considera que existem pelo menos quatro aspectos em que estas três disciplinas (física, história e filosofia) se diferem, sendo eles: o objetivo das disciplinas, o método de investigação, a composição de textos e, finalmente, o papel que a crítica desempenha em suas atividades. Nos concentrado agora nas relações entre a história e a filosofia, veremos que, para Kuhn, a história da ciência tem como objetivo a narrativa dos eventos do passado. Porém, não apenas isso, pois a narrativa deve tornar coerente a sucessão entre os eventos particulares. Quanto ao aspecto da metodologia, Kuhn observou que historiadores apresentam maior fidelidade aos textos que analisar, representando de modo mais fidedigno as ideias do autor, bem como o contexto em que tais ideias foram produzidas e mesmo as influencias anteriores e posteriores à produção da obra. Finalmente, outro ponto que vale a pena destacar é que, no caso da história, a composição dos textos é baseada em investigação prévia, sendo esta a compilação, a organização cronológica e a leitura e interpretação das fontes. Deste modo, quando o historiador produz o seu texto, qualquer fonte nova pode trazer grandes repercussões, levando a que o historiador reescreva o seu texto em nome da coerência entre os eventos apresentados.
.
Por outro lado, a filosofia tem como objetivo característico de sua atividade a realização de generalizações, que, diferentemente das generalizações históricas, pretendem alcançar o grau de universalidade, ou seja, ser aplicáveis para o passado, o presente e o futuro. Além disso, é marca da metodologia desta disciplina a identificação das lacunas teóricas dos textos analisados, fazendo com que haja menos concentração nas próprias ideias do autor, pela concentração maior nas falhas de seu raciocínio. Desta maneira, a composição dos textos filosóficos, segundo Kuhn, surge quando o filósofo apresenta respostas àquelas lacunas encontradas no texto. Elucidando Kuhn, que o filósofo não realiza o mesmo tipo de atividade de pesquisa prévia à escrita de seu texto, quando comparado à análise das fontes históricas pelo historiador. Por fim, vale ressaltar também o papel que Kuhn atribui quase que exclusivamente para a filosofia, que é a crítica. Não que este autor considere que esta atividade seja exclusivamente filosófica, porém, observa que tanto na história, quando especialmente da física, a crítica não é bem vista pelos pares, ou seja, pelos outros historiadores e cientistas. Os primeiros por já se compreenderem desde o início realizando uma pesquisa “a partir do zero”, ou seja, constroem a narrativa coerente com contato direto com os textos. E, os segundos, por compreenderem a sua atividade fundamentalmente como contribuição pontual para o conjunto de conhecimento que a ciência apresenta e, poderíamos acrescentar, imaginando que a crítica provoca atraso no progresso contínuo da pesquisa científica.
.
Em que pese os possíveis problemas desta caracterização kuhniana, que visualiza uma separação clara entre objetivo, metodologia, composição de textos e a função da crítica, Kuhn defende que história e filosofia permaneçam disciplinarmente distintas, vale dizer, com seus próprios departamentos, formas de legitimação do conhecimento produzido, além, é claro, dos quatro aspectos já abordados. Desta forma, Kuhn considera que o diálogo entre história e filosofia da ciência deve ser interdisciplinar e não intradisciplinar. E, nesta sua caracterização, está preocupado não apenas com o modo próprio de historiadores e filósofos desenvolverem as suas atividades, mas também que os graduandos de história e filosofia sejam treinados em seus próprios objetivos, métodos e formas de composição de textos. Assim, mesmo que uma mesma pessoa seja capaz de redigir textos históricos e filosóficos ela, na verdade, estaria atuando ora como historiadora e ora como filósofa.
.
Passando agora para a segunda parte de nossa apresentação, trataremos da analogia que visualizamos quando Kuhn trata da história da ciência. Ou seja, consideramos que quando este autor trabalha a historiografia da ciência, ele assume, implicitamente, uma analogia entre a atividade científica e a atividade do historiador. A questão de fundo que informa esta analogia é o que em epistemologia da ciência costumeiramente é chamada de carga teórica da observação, que, por sua vez, é a consideração de que mesmo nas ciências que possuem objetos empíricos, tais com a física (em algumas de suas manifestações), o cientista nunca tem um acesso direto aos fatos, pois mesmo quando através de instrumentos realiza verificações ou testes de suas hipóteses, ele, na verdade, aplica diversas camadas teóricas sobre os “fatos”. Sendo assim, dentro de uma matriz de análise neo-kantiana (Kuhn localiza sua matriz de análise nesta corrente epistemológica) em que se está epistemologicamente consciente de que todo conhecimento dos objetos é mediado, não se tendo acesso imediato às coisas em si, sabe-se, desde logo, que mesmo as ciências empíricas não lidam com fatos puros.
.
Deste modo, acreditamos que em sua análise da historiografia da ciência, Kuhn projeta esta ideia epistemologicamente informada pelo neo-kantismo, que em tese seria apenas aplicável para o contexto da produção de conhecimento científico, para a sua análise da atividade historiográfica. Do mesmo modo que o cientista, poderíamos afirmar, então, que o historiador também não lida com fatos puros, mas antes que as fontes de que se utiliza na sua narrativa, sejam elas texto, fragmentos arqueológicos, testemunhos etc, estão sempre sujeitas à interpretação. Aprofundando a analogia, vemos ainda que tanto a ciência, quando a história, nesta perspectiva kuhniana, postulam objetos independentes da teoria, ou seja, em que pese seus respectivos objetos de investigação estarem sujeitos à interpretação, existem limites para esta aparentemente ilimitada capacidade de construção. Kuhn, apresenta a ideia de que o mundo, ou a natureza, que é o objeto próprio da pesquisa científica, nem sempre se adéqua às prescrições teóricas que são feitas e, além disso, por vezes pode surpreender o cientista, com elementos naturais que nem sequer eram conhecidos (penso aqui em especial no exemplo do ornitorrinco, fornecido por Kuhn em O caminho desde a estrutura).
.
Um terceiro ponto em que a analogia entre a história e a filosofia pode ser observada é o de que ambos realizam interpretação da linguagem. Vale dizer que, primeiramente, suas atividades são elas próprias erigidas por uma linguagem compartilhada entre os praticantes. No caso especial da ciência, Kuhn afirma que este aprendizado ostensivo dos conceitos e elementos de linguagem é uma etapa imprescindível para o aprendizado do próprio paradigma. O mesmo poderia ser dito no caso do historiador, que adentra em uma disciplina já constituída, a que chamamos história, que apresenta também seus próprios padrões linguísticos e subtrai legitimidade de discursos que não se adéquam a certa tradição narrativa. Entretanto, um ponto que teríamos mais reserva em afirmar a analogia entre a história e a filosofia da ciência, seria o de que o conceito que Kuhn observa de comunidade científica seria aplicável ao caso da história. Não apenas por causa do debate ainda não finalizado sobre a cientificidade da história, mas especialmente por duas consequências: a primeira, seria a de engessar a narrativa histórica em paradigmas, ou seja, aplicar a ideia de que mesmo a história deve apresentar modelo padrão de narrativa; e, a segunda, seria trazer para a história a mesma intolerância que Kuhn observa em relação às novidades para a ciência, sendo assim, atribuiríamos a normalidade da atividade científica, para o contexto da história. Não encontramos a princípio fundamentos teóricos para afirmar este ponto de que o conceito de comunidade científica seria também aplicável ao contexto da história, em que pese nos pontos anteriores, de que história e ciência não lidam com fatos puros, que postulam objeto independente da teoria e de que realizam interpretação da linguagem, nos parecem plenamente plausíveis.
.
Já nos encaminhando para a terceira e última parte de nossa apresentação, gostaríamos de citar um trecho da obra La ciencia y el relativismo de Larry Laudan, em que este autor afirma sobre o relativismo, incluindo neste conjunto a epistemologia que informa a obra de Kuhn, que mesmo a evidência empírica aparentemente não problemática está carregada de teoria. E, mesmo as escolas epistemológicas que debatem com o relativismo, vale dizer, o positivismo, o realismo e o pragmatismo, admitem que a observação é carregada de teoria. Nos atendo exclusivamente neste ponto de concordância entre estas diferentes escolas epistemológicas, poderíamos supor que as críticas kantianas quanto à possibilidade do conhecimento direto das coisas, é traduzido para o contexto da filosofia da ciência na compreensão de que o evento é sempre interpretado. E, esclarecendo este argumento, introduz a participação direta do sujeito na produção do conhecimento, mesmo naquelas disciplinas mais empíricas.
.
Assim, no caso específico da história da ciência, tal com compreendida por Kuhn, o pressuposto de base é de que o historiador não lida diretamente com fatos e, portanto, poderíamos classificar a sua historiografia da ciência como não-factual. Uma vez que mesmo naquelas atividades em que aparentemente o sujeito de conhecimento está mais ausente, por exemplo, na compilação e na escolha das fontes históricas, já está presente o elemento das crenças teóricas do autor e, portanto, a interpretação. No quadro a seguir, podemos visualizar de modo mais patente as ideias que apresentamos, pois, como é possível observar, o historiador (sujeito de conhecimento), está no centro da relação, intermediando fonte e fato histórico. Deste modo, quando realiza a análise das fontes, ele está teoricamente informado. No caso da história da ciência, poderíamos dizer, o sujeito possui um conceito de ciência e preconcebe como esta se realiza internamente (pesquisa) e se relaciona externamente (sociedade, economia, política etc). Além disso, é apenas depois desta atividade de interpretação, que podemos afirmar que os fatos históricos são constituídos, com o cuidado de informar que podem não permanecer os mesmos, ou seja, os fatos históricos são eles mesmos passíveis de interpretação, seja pela influência de descoberta de novas fontes, seja pela discordância de outros historiadores em relação à interpretação anteriormente realizada.
.
Resumidamente, e já nos encaminhando para nossas considerações finais, gostaríamos de afirmar que a historiografia da ciência de Kuhn não determina a metodologia mais fina para a história da ciência. Vale elucidar: afirma o relevante papel da interpretação na análise das fontes, mas não se presta a averiguar os critérios desta mesma interpretação ou como os critérios são formados. Além disso, reconhece três pressupostos que direcionam a atividade do historiador da ciência que, por sua vez, dirigem a atividade de seleção, de interpretação e de narrativa com sentido. Sendo que, nesta apresentação, nos concentramos em apenas um destes pressupostos, ou seja, na relação que Kuhn estabelece entre história e filosofia da ciência. Também é necessário relembrar que a matriz neo-kantiana que informa tanto a perspectiva de Kuhn sobre a atividade científica, quando a sobre a atividade do historiador, estabelece uma relação direta entre o objeto de conhecimento (ciência/fonte) e o sujeito de conhecimento (historiador/narrador), de tal sorte que poderíamos dizer que os pressupostos filosóficos implicam em imagem determinada da ciência.

Comunicação III CIFCyT - Continuidade e descontinuidade no progresso

A comunicação a seguir foi apresentada em 06 de setembro de 2010, no evento III Congreso Iberoamericano de Filosofia da Ciencia y de le Tecnología (Buenos Aires, Argentina). Considero que esta é uma primeira abordagem do problema da continuidade aplicada ao contexto da história da técnica. O título completo da comunicação é Continuidade e descontinuidade no progresso: sobre a diferença entre o desenvolvimento científico e o desenvolvimento técnico a partir da perspectiva historiográfica. Espero que apreciem os elementos reflexivos que apresento. Apesar de ter apresentado com slides, ainda não domino a técnica de como disponibilizá-los no blog, desculpem-me.
.
O.o0o.O
.
Consideremos, em primeiro lugar, que o processo de desenvolvimento histórico nem sempre supõe a ideia de progresso. Deste modo, afirmaremos como progressivo aquele conjunto de eventos do passado que guardam conexão com eventos do presente e que se projetam, pelo menos enquanto tendência, para um futuro. Estando o historiador situado sempre no presente ao narrar eventos que já aconteceram no passado, ele terá que fazer uso de determinadas fontes que apoiem a narrativa que faz, de modo a tornar coerente a sucessão de eventos narrados. No entanto, partindo da perspectiva cognitivamente responsável da filosofia histórica da ciência, devemos levar em consideração que tanto a compilação, a organização e a narrativa expressa serão feitas a partir da percepção que o historiador tem sobre a história. Assim, em segundo lugar, postulamos a relação entre a filosofia e a história da ciência, na medida em que a depender da compreensão que se tenha da ciência e do tipo de desenvolvimento histórico que ela apresenta (aspecto filosófico ou formal), teríamos diferentes modos de narrar a sua história (aspecto histórico ou material).
.
Neste sentido, afirmamos que a história, mesmo quando compreendida como progressiva, pode não apresentar uma direção ascendente, tal como, por exemplo, quando supomos que as teorias científicas do presente são melhores que as teorias do passado e, portanto, mais próximas da verdade. Aliás, a ideia de progresso pode comportar pelo menos três pressupostos diferentes quando aplicada ao contexto da história da ciência: (1) progresso científico cumulativo, prescreve um crescimento contínuo, seja pela correção ou pelo acréscimo de observações, de explicações ou de conteúdo empírico às teorias anteriormente dadas na ciência; (2) progresso não-cumulativo, prescreve que o desenvolvimento da ciência ocorre através de rupturas com a acumulação de conhecimento anterior, devido à substituição de teorias ou de paradigmas que regravam a atividade de pesquisa científica; teríamos ainda uma terceira possibilidade que é a ideia de que o progresso científico ocorre ora por acumulação e ora por rupturas, progresso este a que chamaremos de (3) misto. Esta terceira forma de compreensão do progresso científico é, em última instância, uma combinação das duas anteriores, mas que se dão diacrônicamente uma em relação à outra, ou seja, ou a ciência apresentará em um dado período histórico a acumulação de conhecimento ou o seu contrário, deste modo, um momento de ruptura.
.
É preciso notar que na opção historiográfica realizada entre compreensão da ciência como progresso cumulativo ou não-cumulativo, subjaz uma série de outras opções historiográficas feitas pelo historiador, consciente ou não de que realiza tais opções. Escolhi para esta apresentação três escolas clássicas da epistemologia científica, nomeadamente o empirismo, o falseacionismo e o relativismo, sendo que para cada uma destas filosofias da ciência, tentei definir quais seriam as opções historiográficas implícitas quanto às fontes, quanto à atividade científica, quanto ao objetivo da atividade científica e quanto à relação que estabelece entre os três elementos anteriores (fonte, atividade e objeto) e o progresso histórico.
.
Sendo assim, é possível notar que, partindo das perspectivas empiristas denominadas ingênuas, a fonte da atividade científica é o evento, fato ou fenômeno. Além disso, todo evento é entendido como um dado, ou seja, algo capaz de fornecer por si só conhecimento acerca da natureza. Deste modo, a atividade empregada prioritariamente na pesquisa científica é a observação e os sentidos de um modo mais geral. Assim, o objetivo a que se almeja alcançar com a observação dos fatos que informam conhecimento sobre a natureza é a verdade, pois nesta forma primeira de epistemologia da ciência, ainda não se está questionando a possibilidade de alcançar o conhecimento certo sobre a natureza, acredita-se, portanto, no potencial compreensivo da razão e no potencial informativo da realidade. É possível notar que o principal representante desta epistemologia empirista ingênua é Francis Bacon.
.
Quanto à segunda escola epistemológica, ou seja, a falseacionista, ela compreende que a atividade científica baseia-se prioritariamente em hipóteses. É preciso notar aqui a inversão da atenção, pois enquanto no empirismo a atenção está voltada para os fatos e às informações que podemos obter a partir deles, no falseacionismo a atenção está voltado para o método de produção do conhecimento. Nesta epistemologia falseacionista, já está presente a suspeita em relação ao conhecimento direto da natureza, sendo este conhecimento construído de modo indireto através da mediação realizada pelo método científico. Em outras palavras, quanto mais aperfeiçoado o método, mais correto será o conhecimento produzido a partir de sua aplicação. O filósofo da ciência Karl Popper, principal expoente desta epistemologia, parte da crítica do verificacionismo, entendendo que o cientista deve recorrer aos fatos não para confirmar suas teorias, mas para “desconfirmá-las”. Sendo assim, o cientista cria teorias para explicar determinados fenômenos, deduz delas hipóteses (H1, H2, H3 etc) e confronta cada uma delas com fatos. Será melhor a hipótese mais testada, ou seja, aquela que mais resistiu à confrontação empírica. Deste modo, é possível notar que a atividade principal de pesquisa é o teste das hipóteses e, buscando alcançar objetivo aparentemente mais exequível que a verdade, coloca como objetivo mais modesto que aquele a verossimilhança. Assim, a relação que se estabelece entre a fonte, a atividade científica e o objetivo a ser alcançado pela pesquisa, leva a ideia de progresso histórico por meio da superação.
.
Finalmente, quanto a terceira e última escola epistemológica que abordaremos em nossa apresentação, temos o chamado relativismo. Muito embora esta caracterização relativista seja tomada pelos próprios representantes desta epistemologia como pejorativa, utilizamos aqui no estrito sentido de que esta epistemologia está localizada no ponto mais extremo da desconfiança em relação à capacidade de a ciência alcançar algo a que podemos chamar uniformemente de verdade, uma vez que observa na sucessão histórica entre teorias, métodos e objetos de investigação cientifica, indício suficiente para afirmar que se é que existe alguma verdade a ser alcançada pela ciência, ela deve ser compreendida de maneira local e historicamente determinada, ou seja, em um grupo, instituição, espaço e tempo singulares, de modo que o que seria verdade para determinado grupo, pode supostamente ser considerado como falso por outro.
.
Assim, o relativismo epistemológico aplicado ao contexto científico, considera que tudo o que a ciência faz em sua pesquisa é uma tentativa de aproximação coerente entre a teoria (ou hipótese, ou paradigma) e os fatos (entendido aqui em sentido empírico, uma vez que postula a independência do mundo em relação às teorias científicas). Além disso, a aproximação entre a teoria e o fato é realizada segundo um problema anteriormente dado como legítimo e relevante pelos cientistas. Desta maneira, afirmamos que a epistemologia relativista considera que a atividade específica da ciência é a resolução de problemas, que, na realidade, ocorre tanto na aproximação entre teoria e fato, como no ajuste da teoria ou do paradigma, uma vez que este não se apresente conforme os eventos empiricamente dados. O que seria considerado como hipótese ad hoc para a epistemologia falseacionista, ou seja, a modificação da teoria para melhor se adequar aos fatos, é aqui considerado um procedimento normal da ciência. Portanto, o objetivo da atividade científica para a epistemologia relativista é a coerência entre a teoria e o fato, abandonando em grande medida objetivos que sejam externos à própria atividade científica, o que incluiria a ideia de verdade uniformemente dada para todo e qualquer objeto de investigação. Finalmente, a relação que é possível visualizar a partir da análise da fonte, da atividade e do objeto da investigação científica é tanto a de acumulação quanto a de não-acumulação, a depender de se em um dado momento considerado a ciência se desenvolve por acréscimo ao conjunto de conhecimentos anteriormente dados, ou passa por momento de ruptura em relação aos próprios pressupostos de investigação. Para Thomas Kuhn, o principal expoente desta epistemologia relativista, estes momentos de mudanças dos pressupostos são chamados de revoluções científicas.
.
Dados estes elementos que analisamos nas epistemologias empirista, falseacionista e relativista, podemos afirmar que a narrativa histórica da ciência pode ser considerada ou não progressiva, que esta progressão é, por sua vez, compreendida ou como cumulativa, não-cumulativa ou mista, mas, finalmente, a própria escolha entre uma e outra perspectiva sobre o desenvolvimento histórico da ciência supõe outras opções historiográficas, tais como a compreensão do historiador acerca da fonte, da atividade e do objetivo da atividade científica, para melhor compreendermos os pressupostos historiográficos, ou seja, aquela filosofia da ciência que informa (ou mesmo determina) a narrativa dos eventos científicos.
.
Passando agora para a segunda parte de nossa apresentação, analisaremos a seguir uma aplicação particular da ideia de progresso científico, que é aquele que podemos observar na história da ciência e na história da técnica. A análise que apresentaremos a seguir é preliminar, porém já aponta para alguns direcionamentos interessantes sobre semelhanças e diferenças entre história da ciência e história da técnica. Sendo assim, seguiremos em nossa apresentação a sequência: 1) História da técnica e continuidade; 2) História e a relação com o tempo; e, 3) Conclusões preliminares.
.
A primeira pergunta que nos pareceu interessante na tentativa de aplicar a mesma reflexão sobre os pressupostos historiográficos da ciência à história da técnica é, no caso da história da técnica, a continuidade do progresso seria em relação a que? Esta pergunta, por sua vez, nos remete ao próprio conceito de técnica, que, usualmente, tem sido entendida ou como arte ou ofício, restringindo os objetos à uma das duas opções; ou técnica é compreendida em um sentido mais lato, compreendendo a relação entre esta atividade com o contexto social e a visão de mundo de seus atores. Partindo desta perspectiva mais lata, podemos afirmar que especificamente quanto a compreensão do tempo, elemento essencial para a história, podemos afirmar que existe uma distorção, ou melhor, uma aceleração do tempo da técnica em relação ao tempo social, aceleração esta apresentada por Jüergen Habermas em O futuro da natureza humana.
.
Deste modo, podemos identificar que o tempo da técnica está associado às ideias de aceleração e de inovação, dado, por exemplo, a constante pressão de substituição de uma tecnologia por outra, mesmo que a técnica anteriormente aplicada ainda funcione. Exemplo disto é a substituição dos aparelhos celulares por opções mais novas, que muitas vezes trazem maior número de modificações estéticas do que propriamente técnicas. Por outro lado, o tempo social está relacionado com o tempo de legitimação e de compreensão. Porém, aqui enfrentamos um problema marcante ao tratar da técnica, pois a excessiva especialização do conhecimento e o seu patenteamento, muitas vezes prejudicam o acesso deste conhecimento pela sociedade em geral. Muito embora vejamos a dificuldade adicional que estes elementos trazem para a compreensão social das técnicas atualmente utilizadas, consideramos que o esforço para torná-las até certo ponto públicas, é necessário não apenas em termos cognitivos, mas principalmente por ser a sociedade em geral (usualmente denominados como consumidores) os destinatários finais da produção técnica. Sendo assim, considerando o contexto político geral democrático, para que esta aplicação seja considerada legítima o esforço de elucidação não é apenas uma gentileza, mas antes uma obrigação.
.
Podemos, finalmente, apresentar dois exemplos de técnicas que fundamentalmente são aplicadas na pesquisa de algumas ciências, mas que fogem quase por completo do conhecimento público, especialmente em relação aos riscos de sua aplicação. O primeiro exemplo, retirado da obra de Habermas referida, é a do Diagnóstico genético pré-implantação, que seria um estágio de desenvolvimento avançado da busca pelo mapeamento e pela influência direta no genoma humano. Segundo Habermas, pessoas que ainda não nasceram e que poderiam ter o seu material genético alterado por conta de decisões de seus pais, perderiam em grande medida a compreensão de sua autonomia, o que teria consequências para a sua autocompreensão como ser livre e responsável por suas ações. O segundo exemplo, retirado da obra de Hugh Lacey em Valores e atividade científica 1, é o da aplicação das sementes transgênicas de trazem grandes impactos sociais, além de ambientais, uma vez que retira a necessária biodiversidade em relação à algumas espécies, por exemplo, a soja, fazendo com que Lacey considere a necessidade de maior pesquisa sobre os riscos desta técnica antes de ela ser efetivamente aplicada em seu contexto social (neste caso, em contraposição ao laboratorial). Assim, no primeiro exemplo, temos consequências destacadamente individuais quanto à aplicação de técnicas sem que haja adesão e legitimação dos seus destinatários e, no segundo caso, consequências sociais.
.
Esta distorção, ou diferença de formas de temporalidade, quando analisamos exclusivamente o caso da relação entre o tempo da técnica e o tempo social, deve ser levada em conta pelo historiador da ciência, quando da tentativa de aplicar os mesmos pressupostos historiográficos da ciência para a análise da história da técnica. Além disso, e já nos encaminhando para nossas conclusões preliminares, podemos afirmar pela análise feita que, tanto a história da ciência, como a história da técnica, podem ser compreendidas como contínuas, sendo, portanto, aplicável a categoria historiográfica da continuidade para a história da técnica. No entanto, a continuidade assim considerada se dá através de uma restrição de seu objeto, uma vez que a técnica não poderá ser compreendida pelo historiador em todas as manifestações em que ela já foi compreendida, mas se atendo as formulações do período histórico que o historiador analisa. E, finalmente, ao fazermos o exercício de ampliação do conceito de técnica para abarcar, além dos elementos técnicos propriamente trabalhados pela ciência, veremos que mesmo estes guardam uma relação com seu contexto humano e social, que torna o elemento da continuidade mais complexo, uma vez que a própria produção e aplicação de técnicas no contexto social estaria sujeito à legitimação dos seus destinatários. Sendo assim, vemos em autores tais como Habermas e Lacey, a dependência dos avanços técnicos de decisões legítimas na sociedade, o que pode refrear ou alimentar o desenvolvimento técnico. Portanto, para o historiador contemporâneo não basta a restrição de seu objeto de investigação técnica apenas ao contexto laboratorial, ou seja, aquele em que a técnica é efetivamente produzida, mas antes uma consideração mais ampla, que leve em conta pelo menos os contextos econômicos, políticos e sociais que levam ou não à aplicação de determinadas técnicas na sociedade.

domingo, 24 de outubro de 2010

Palestra na ANPOCS: A imagem de desenvolvimento da ciência, Parte 1


Escrevo diretamente de Caxambu (Minas Gerais), que, apesar de nos ter recebido no domingo com sol forte, no final da tarde decidiu amenizar o calor com chuva. Para quem anualmente participa do evento, provavelmente será fácil imaginar que estou em Caxambu para participar do 34º ANPOCS - Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais.
.
Na verdade, é a primeira vez que participo deste evento e, coincidentemente, em atividade também nova na programação. Trata-se do Projeto TEM - Circuito de Ciência e Tecnologia. A ideia é permitir a interação entre o público e as diversas ciências em atividades que ocorrerão em 12 estações distribuídas em pontos estratégicos da cidade. Assim, a interação será com público de faixa etária e de formação diversas.
.
Particularmente quanto à atividade que me coube, será uma palestra com o título A imagem de desenvolvimento da ciência. Minha palestra faz parte da programação "Conversando com a ciência", que também terá palestras com Prof. Dr. Pablo Mariconda (Filosofia/USP), que ministrará A astronomia moderna e a dissolução do cosmo antigo e medieval, Prof. Dr. Claudemir Tossato (Filosofia/UNIFESP), que ministrará Astronomia e cosmologia em Brahe e Kepler e Prof. Dr. Maurício Ramos (Filosofia/USP), que ministrará O ser vivo.
.
Nesta breve postagem, além de apresentar a atividade, falarei um pouco sobre o tema que me coube, para que na Parte 2 de minha postagem possa falar com mais detalhes sobre o conteúdo e a reação do público ao mesmo. Bem, como alguns de vocês já sabem, estudei no mestrado a historiografia da ciência de Thomas Kuhn, em especial as teses que este autor defende desde a obra A estrutura das revoluções científicas até os ensaios tardios publicados na compilação O caminho desde A estrutura. Como a palestra está direcionada a público diverso e provavelmente não especializado, considerei melhor apresentar a imagem de desenvolvimento da ciência de Kuhn, como forma de moldar uma primeira perspectiva sobre a ciência nos ouvintes.
.
Deste modo, seguirei o seguinte roteiro: 1) Breve apresentação sobre o Thomas Kuhn e a obra A estrutura das revoluções científicas; 2) Apresentar os modos de análise da ciência: o tradicional e o relativo à nova história da ciência; 3) Apresentar a ideia de que a ciência se desenvolve em fases sucessivas, que passa de um período pré-paradigmático ao período paradigmático; 4) Caracterizar os períodos pré-paradigmático e paradigmático; 5) Relacionar o período paradigmático com ciência normal e com os episódios de revolução científica; 6) Apresentar a ideia de que talvez existam diferentes "revoluções" na história da ciência, sendo a que ocorreu nos séculos XVI e XVII apenas uma delas; 7) Reforçar a importância do conceito de paradigma; 8) Apresentar alguns problemas de sua aplicação, especialmente com relação às chamadas ciências humanas e sociais.
.
Concluirei afirmando que a ciência é um objeto histórico e, portanto, sujeito a mudanças. Sendo que a educação paradigmática não apenas fixa um modo de realização da ciência, como introduz o cientista em formação uma nova linguagem (distinta da cotidiana), método (para realização da pesquisa) e mesmo à visão de mundo distinta (relativa aos seres que interessam à pesquisa científica), que são compartilhados pela comunidade científica.
.
O0.0.oO

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Ensaio sobre "O estrangeiro" ou é possível ao homem acostumar-se com tudo?



oo.OoO.oo
.
No domingo passado, dia 10 de outubro de 2010, aproveitando o feriado prolongado em São Paulo, tive a oportunidade de assistir à peça "O estrangeiro", baseada na obra de Albert Camus, com belíssima atuação de Guilherme Leme e direção de Marisa Holtz. Quem estiver em na terra da garoa, vale conferir: http://www.livrariacultura.com.br/teatro/o_estrangeiro.asp
.
Bem, mas meu propósito na postagem não é apenas o de fazer propaganda, na verdade ao assistir a peça pude lembrar da experiência que tive ao ler esta obra. O personagem central, Meursault, inicia a narrativa de alguns fatos recentes de sua vida, vestindo-se para o público (na peça, o ator veste terno completo, como se aprontando para ir ao trabalho) e ao mesmo tempo despindo-se, ao relatar o que se passa em sua alma.
.
A trama pode até ser considerada simples. Um homem recebe mensagem de um asilo de que sua mãe está morta, chamando-o para o funeral. Ao chegar lá, nega-se a ver o corpo, dorme durante as horas em que o corpo é velado e não derrama lágrimas por sua genitora. Tudo se passa com bastante tranquilidade em que pese o personagem não parecer especialmente indiferente ao ocorrido, pois se desloca até o asilo, bem como procura justificar porque mantinha sua mãe naquele local.
.
A justificativa que Meursault atribui é a ausência de dinheiro, sendo a permanência de sua mãe no asilo aquilo que de melhor ele poderia lhe oferecer. De qualquer modo, agora que já prestou a última homenagem a sua mãe, Meursault retorna para sua casa e para a sua vida normal. No dia seguinte ao funeral, encontra Marie na praia. Uma jovem que lhe parece especialmente atraente, com quem inicia relacionamento.
.
A história toma ares mais densos quando Meursault trava relação com seu visinho Raymond, pessoa de caráter duvidoso que afirma para todos que é comerciante, quando na verdade se trata de um cafetão. Este, enciumado pela ideia de ter sido traído pela amante, a espanca. Depois do que pede para que Meursault escreva-lhe uma carta e que testemunhe que de fato a moça o havia traído. O envolvimento de Meursault com o caso, tomando partido de Raymond, causa boa impressão neste que o convida para fim de semana em uma cabana na praia. Convite a que Meursault aceita após confirmar que Marie poderia acompanhá-lo.
.
É neste fim de semana que a vida de Meursault acaba por se modificar radicalmente. Diante do árabe que pertencia ao mesmo grupo que a garota espancada por Raymond e que estava ali para um acerto de contas, Meursault atira mais de uma vez nele, assassinando-o. Meursault é preso e processado pelo crime que cometera, sem, no entanto, demonstrar arrependimento em relação ao feito. Atribui o acontecido ao Sol, pois no dia em que matou, aquele estava excessivamente quente e o brilho dos raios o incomodavam.
.
Durante o processo, que é noticiado pela mídia, Meursault começa a ser questionado por vários aspectos de sua vida: sobre sua reação (ou falta de) à morte da própria mãe, sobre sua relação com Marie (iniciada no dia seguinte de seu retorno do funeral), sobre sua relação com Raymond e com o caso da amante que fora espancada. Ao que parece, as pessoas a sua volta o julgam insensível, pessoa com a alma vazia, incapaz de chorar pela morte da mãe e capaz de matar outro ser humano sem demostrar sinal de arrependimento.
.
Meursault parece assistir o seu próprio julgamento com indiferença. Como indiferente era para ele o seu relacionamento com Marie, exceto talvez quando a desejava e saciava seu desejo. Procurava mostrar a todos a sua volta o quão normal era: achava que amava a mãe, como todo mundo; mantinha um relacionamento, um emprego, vivia a sua vida, enfim. Mas, eis que o acaso, um acontecimento fortuito (como o raio de Sol refletido na faca impunhada pelo árabe e que atinge os seus olhos) o torna assassino. Seria o acaso ou a indiferença o verdadeiro motivo da mudança operada na vida de Meursault?
.
De fato, mesmo antes do julgamento Meursault já apresentava sinais de indiferença em relação ao mundo à sua volta e mesmo em relação às pessoas com que travava conhecimento. Mas, o que o faz manter emprego e um relacionamento? Para alguém que seja indiferente não pareceria razoável esperar tamanho esforço e compromisso. Parece, então, que o primeiro Meursault, aquele de antes do assassinato, ainda aspira algo em relação à vida, nem que seja certa dose de normalidade e de aceitação social.
.
Depois do primeiro Meursault, podemos notar dois momentos de ruptura que levarão ao segundo Meursault: o da ruptura social e o da ruptura interna. Quanto marco de ruptura social, não o localizo exatamente no assassinato, que tem a sua importância para o enredo, mas nem tanto para a pensonagem. Quero dizer que por mais que tirar a vida de outro ser humano seja algo suficientemente grave, Meursault parece encarar com estranha normalidade, como uma ação entre outras, como vestir ou despir a roupa, como andar na praia, casualmente portar uma arma e atirar em alguém. Parece-me que a verdadeira ruptura social ocorre no julgamento pelo qual passa, onde todos passam a vê-lo como assassino e não mais como membro da sociedade.
.
Observando, então, o próprio julgamento, Meursault se questiona por que o juiz, os advogados de defesa e de acusação, o juri e demais presentes não perguntam sua opinião sobre o caso, já que lhe parece seria ele a pessoa mais indicada para explicá-lo. A questão é que o processo já possui seus ritos e sendo Meursault, ou o assassino do próprio pai que seria julgado na sessão seguinte do tribunal, ambos seriam tratados da mesma forma. A igualdade entre os dois criminosos os tornam diferentes em relação à sociedade, o que leva Meursault à percepção da diferença que mantinha em relação aos demais.
.
Ele passa a se perceber como presidiário e, em suas próprias palavras, é fácil acostumar-se com aquela vida. Pouco há para fazer no contexto de limitação da liberdade e, aquele que agora sonha com a praia e com Marie, será levado pelo mesmo ritmo do hábito, da passagem das horas e do tempo, a se perceber como criminoso. É após sua condenação à execução pública que ocorre o segundo momento da ruptura, àquela que denominei de interna. Esta ocorre quando finalmente Meursault permite que o padre venha vê-lo após várias negativas. Ao ouvir sobre o arrependimento e perdão, o condenado já não está disposto a esconder suas verdaderias inquietações. Acaba de ser condenado por homens que antes o tratavam como igual e duvida que o além possa lhe causar maior conforto.
.
Agora sim, tudo é indiferente. De que vale a mãe de Meursault ter sido feliz nos anos em que esteve no asilo e por isso seu filho não ter encontrado motivos para chorar em seu funeral? De que vale ter sido um cidadão exemplar, mantendo emprego e buscando até certo ponto a estima de seus semelhantes? De que vale ter sido sencero, afirmando os motivos que verdadeiramente considerava terem sido os que motivaram o crime que cometera? De que vale, enfim, ter sido perfeitamente adequado durante toda a sua vida se, na verdade, sempre fora diferente. Apresentando uma perspectiva de vida que contrariava as expectativas gerais ao considerar indiferente aquilo a que ele próprio se dedicava em sua vida.
.
Não me parece que seja exatamente isso. Acho mesmo que Meursault (o primeiro) ainda encontrava meios e motivos para agir, procurando ser igual a seus semelhantes. No entanto, é na sucessão das rupturas social e interna que ele se torna o segundo Meursault. Não que ele próprio tenha alterado o modo como via a vida. O que aparentemente acontece é que a sociedade não encontra mais lugar para ele na normalidade, uma vez que ele cometeu ato socialmente avaliado como negativo. O segundo Meursault assume para si, então, o papel até certo ponto de um mártir social, ou seja, aquele que está disposto a adequar-se mesmo nas piores circunstâncias. Deixa-se julgar e aceita o julgamento. E, o que ele consegue com isso? Aparentemente a saída do mundo.
.
A peça ou a obra "O estrangeiro", para aqueles que tiverem o ânimo de ler, levanta questões que podem beirar reflexões profundas sobre as aspirações humanas. Alguns pares de questões podem ser levantadas, tais como: a relação entre adequação e inadequação social; a relação entre auto-percepção e percepção social; a relação entre hábito e auto-percepção; a relação entre liberdade individual e restrição social. Podemos ver a obra de diversas perspectivas, o que seria equivalente a analisar a alma humana também sobre diferentes olhares, fazendo do texto espelho (mesmo que apenas como exercício hipotético-experimental) da alma.

domingo, 10 de outubro de 2010

Resenha – White, Hayden. Meta História – Introdução (p. 36-43)

Obra: White, H. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. Tradução de José Laurênio de Melo. 2 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

Obs: Para ler a segunda parte desta resenha, acessar a postagem Resenha - White, Hayden. Meta-História - Introdução (p. 26-36), de 19 de setembro de 2010.

oo.0o0.oo

Explicação por implicação ideológica
.
- As explicações ideológicas refletem o elemento ético do historiador, decorrentes da posição pessoal que assume em relação à natureza do conhecimento histórico e as implicações que podem ser inferidas dos acontecimentos passados para o entendimento do presente. White define “ideologia” como conjunto de prescrições para a tomada de posição no mundo presente da práxis social e atuação sobre ele (para mudá-lo ou para mantê-lo). As prescrições são acompanhadas de argumentos que arrogam autoridade da ciência ou do realismo. Nesta análise, White acompanha as ideia de Karl Mannheim Ideology and Utopia, postulando quatro posições ideológicas básicas: anarquismo, conservadorismo, radicalismo e liberalismo. Afirma ainda que existiriam outras posições possíveis, como o apocalipticismo, o reacionário e o fascista, cuja essência está no autoritarismo, respectivamente, em relação a “revelação divina”, a prática de uma classe ou de um grupo como sistema eternamente válido de organização social e a autoridade indisputada do chefe carismático (p. 36-7);
.
- Nota 11: White considera que o anarquismo é a implicação ideológica do romantismo do séc. XIX, do mesmo modo que o romantismo alimentou o fascismo do século XX. Já o conservadorismo não aprova uma visão anárquica do mundo e nem uma concepção radical. Pretende, assim, a defesa do status quo como elemento de uma unidade orgânica, que anarquistas e radicais sonham em promover (p. 37);
.
- Os quatro posições ideológicas básicas tem em comum o fato de apresentarem sistemas de valores que revindicam a autoridade da razão, da ciência ou do realismo. Sendo assim, são epistemologicamente conscientes de um modo que os sistemas autoritários não o são, empreendendo esforço para analisar os dados do processo social, tal como vistos pelas perspectivas alternativas. Sendo assim, as formas oitocentistas de anarquismo, conservadorismo, radicalismo e liberalismo são “cognitivamente responsáveis” (p. 38);
.
- Nota 12: Pepper afirma que “cognitivamente responsável” é o sistema filosófico comprometido com a defesa racional de suas hipóteses de mundo (p. 38);
.
- White afirma que as quatro posições ideológicas possíveis que adotará representam uma preferência ideológica geral e não partidos políticos específicos. São diferentes atitudes em relação à possibilidade de redução do estudo da sociedade a uma ciência e à própria desejabilidade de fazê-lo, diferentes noções das lições que podem ser ministradas pelas ciências humanas, concepções sobre a direção das mudanças e diferentes orientações temporais, que levam a compreensão de passado, de presente e de futuro segundo a forma ideal de sociedade. Embora essa posição ideológica possa não ser conscientemente assumida pelo historiador. Citação: “Assim como toda ideologia é acompanhada por uma ideia específica de história e seus processos, toda a ideia de história é, também afirmo, acompanhada por implicações ideológicas especificamente determináveis” (p. 38);
.
- Com relação ao problema da mudança social: é inevitável para as quatro concepções, embora apresentem diferentes enfoques quando a desejabilidade e ao ritmo destas mudanças. Conservadores desconfiam das transformações no status quo social, mas liberais, radicais e anarquistas são menos desconfiados em relação à mudança em geral, sendo estes menos ou mais otimistas em relação a mudanças sociais rápidas. Conservadores veem as mudanças como análogas às gradualizações botânicas, sendo que os liberais do séc. XIX observam-nas como ajustes ou sintonias finas de um mecanismo. Nestas duas ideologias (conservadorismo e liberalismo) considera-se que a estrutura da sociedade é sólida e que mudanças são inevitáveis, mas ela é mais eficaz quanto mais modificam partes da totalidade, ao invés de mudarem as relações estruturais. Radicais e anarquistas, por outro lado, consideram as transformações estruturais uma necessidade, os primeiros em vista de uma reconstrução da sociedade em novas bases e os segundos abolir a sociedade e substituí-la por uma comunidade, que tem sua coesão mantida por sentimento compartilhado de sua “humanidade” comum (p. 39);
.
- Com relação a questão da velocidade das mudanças: conservadores defendem um ritmo “natural”, enquanto os liberais o ritmo “social” do debate parlamentar, do processo educacional ou das disputas eleitorais. Radicais e anarquistas prefiguram transformações cataclísmicas, embora os radicais sejam mais conscientes do poder necessário para levar a cabo tais transformações, observando melhor a força inercial das instituições herdadas e preocupando-se com os meios para realizar as mudanças (p. 39);
.
- Existem, assim, diferentes orientações temporais segundo cada ideologia adotada. Mannheim afirma que os conservadores consideram a história como um aperfeiçoamento progressivo da estrutura social vigente, sendo esta a melhor forma de sociedade que os homens realisticamente podem contar ou legitimamente se inspirar. Liberais consideram que um tempo no futuro em que a estrutura teria sido melhorada, mas o projetam em futuro remoto, desencorajando modos radicais de sua materialização no presente. Radicais consideram o utópico como iminente, fazendo com que desejem meios revolucionários de realizá-lo. Anarquistas idealizam um passado remoto de inocência humana prejudicado pela passagem ao estado social, projetando a utopia em plano não-temporal, como uma possibilidade de realização humana a qualquer tempo, bastando que se exerça controle sobre humanidade essencial, seja pela vontade ou pela consciência (p.39-40);
.
- Mannheim classifica também as diferentes ideologias segundo a demarcação temporal que fazem do ideal utópico, classificando-as em termos de congruência social e transcendência social. Assim, o conservadorismo é mais socialmente congruente, enquanto o liberalismo o é em termos relativos. O anarquismo é mais socialmente transcendente e o radicalismo o é relativamente. Na verdade, cada uma delas apresenta elementos de congruência e de transcendência, o que faz com que a questão seja mais de ênfase. As ideologias convergem em sua preocupação com a mudança e é justamente isso que os leva a justificativa histórica de seus programas (p.40);
.
- A diferença entre as ideologias se coloca no valor que atribuem à instituição social existente, levando as concepções quanto a forma de evolução da história e a forma que deve assumir o conhecimento histórico. Ainda segundo Mannheim as diferentes ideologias interpretam o progresso de modos diferentes. Sendo assim, o que é progresso para uma será decadência para a outra, além do que apresentam diferentes formas de explicação para o que tem acontecido na história, o que reflete as orientações “científicas” de cada ideologia (p.40);
.
- Radicas partilham com os liberais a ideia de estuda da história de modo racional e científico, apesar de apresentar diferentes concepções do que seria esta racionalidade e esta cientificidade. Enquanto os primeiros buscam leis das estruturas e dos processos históricos, estes buscam tendências gerais ou os rumos gerais do desenvolvimento. Já os conservadores e os anarquistas, acompanhando a tendência geral do século XIX consideram que é possível encontrar um sentido para a história em esquemas cognitivamente responsáveis e, portanto, não-autoritários. O anarquista tende para as técnicas empáticas do romantismo nos seus relatos históricos e o conservador tende a integrar as intuições dos objetos históricos em relato organicista do processo (p.40);
.
- White considera que não existe critério extra-ideológico para julgar e as concepções conflitantes do processo e do conhecimento histórico. Uma vez que tais concepções baseiam-se em considerações éticas, assumir uma postura epistemológica para julgar a adequação cognitiva não seria mais que assumir também outra postura ética. Não é possível assegurar que uma concepção seja mais “realística” que a outra, pois divergem justamente quanto ao critério de “realismo”. Também não se pode afirmar qual dos conhecimentos históricos produzidos é mais “científica” que o outro sem certa concepção do que é uma ciência histórica ou social (p.40 - 1);
.
- White afirma que no século XIX a concepção mais aclamada de ciência era o mecanicismo, mas havia divergência entre os teóricos sociais quanto à legitimidade de uma ciência mecanicista da sociedade e da história. Assim, os modos formista, organicista e contextualista continuaram a florescer nas ciências humanas do século XIX devido a estas divergências de opinião quanto à adequação do mecanicismo (p. 41);
.
- A questão não é a de classificar as diferentes concepções de história do século XIX em função de determinado “realismo” ou “cientificidade”, mas antes de mostrar como considerações ideológicas permeiam as explicações dos campos históricos abordados pelos historiadores, bem como construir modelo verbal dos processos desse campo numa narrativa (p. 41);
.
- White afirma que a opção ética da obra histórica se reflete no modo de implicação ideológica resultado da relação entre percepção estética (elaboração do enredo) e operação cognitiva (o argumento), levando a enunciados prescritivos que vão além da descrição ou da análise. Assim, as implicações morais de um argumento histórico tem que ser inferidas do relacionamento que o historiador presume ter existido no próprio conjunto de eventos considerado, entre estrutura do enredo da narrativa e forma do argumento para a explicação “científica” (ou “realística”) explícita no conjunto de eventos (p. 41);
.
- Exemplo: eventos postos em enredo trágico podem ser explicados “cientificamente” recorrendo a leis precisas de determinação causal ou leis putativas da liberdade humana. No primeiro caso a consideração é de que o homem está atado a destino inelutável por sua participação na história, enquanto no segundo caso os homens poderia agir de modo a controlar ou pelo menos influenciar seus destinos. Ideologicamente, poderíamos afirmar que no primeiro caso temos um impulso conservador e no segundo impulso radical. Tais considerações não precisam ser explicitamente tematizadas na narração histórica, mas são compreendidas a partir do tom ou clima em que são moldadas a resolução do drama e a epifania da lei que se manifesta. White considera que este modo mecanicista de explicação da história é utilizado por Spengler e por Marx, já que ambos justificam o enredo trágico, sendo que no primeiro a tendência social é de acomodação e no segundo é heroísmo e militância. Afirma ainda que esta seria o mesmo tipo de diferença encontrada entre as tragédias euripidiana e sofocliana ou entre o Rei Lear e Hamlet de Shakespeare (p. 41-2);
.
- Para fins de ilustração, cita alguns historiadores:
- Ranke, seria “vazado”, segundo um enredo cômico. Isto por que o seu tema central é a reconciliação. O modo de explicação por ele utilizada foi o organicista, pois busca as estruturas e processos integrativos, sendo estes os modos fundamentais de relação encontrados na história. Segundo White, a preocupação de Ranke não estava na descoberta de leis, mas sim das ideias dos agentes e agências históricas. A combinação entre enredo cômico e modo organicista levam a implicações ideológicas conservadoras. As formas apresentadas por Ranke apresentam, assim, o desfecho harmonioso da comédia, mas o leitor contempla esta harmonia no campo histórico como estrutura concluída de ideias (instituições e valores), fazendo concluir que se habita o melhor dos mundos históricos possíveis, ou pelo menos o que se pode “realisticamente” achar que exista, dado o relato histórico feito por Ranke (p. 42);
.
- Burckhardt era contextualista, explicando os eventos na rica trama das individualidades discrimináveis. Negava tanto a possibilidade de se inferir leis quanto a submissão à análise tipológica, sendo sua obra Civilização do Renascimento considerada sem “estória” e vazada no modo narrativo da sátira, pois este é o tipo ficcional da ironia e que recusa oferecer os tipos de coerências formais da estória romanesca, da tragédia e da comédia. Aliás, o modo narrativo da sátira se aproxima de uma perspectiva cética de conhecimento, apresentando como proposta anti-ideológica, oposta, portanto, às concepções de filosofia da história, tais como as de Marx e Hegel, ou Ranke, este último desprezado pessoalmente por Burckhardt (p. 42-3);
.
- A narrativa satírica, no entanto, possui ela própria as suas implicações ideológicas, que podem ser consideradas liberais se o tom for otimista e conservadores se o tom for resignado. A questão levantada por Burckhardt de campo histórico como textura das entidades individuais reunidas está associado ao seu ceticismo formal, desencorajando o uso da história para a compreensão do mundo atual senão em termos conservadores (p. 43).

domingo, 19 de setembro de 2010

Resenha – White, Hayden. Meta História – Introdução (p. 26-36)

Obra: White, H. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. Tradução de José Laurênio de Melo. 2 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

Obs: Para ler a primeira parte desta resenha, acessar a postagem Resenha - White, Hayden. Meta-História - Introdução (p. 23-26), de 29 de julho de 2010.

oo.0o0.oo

Explicação por argumentação formal

- Enquanto o item anterior tratou do enredo utilizado no relato narrativo, este item tratará de outro nível de análise que é o da finalidade ou o do significado. Este tipo de explicação por argumentação faz uso do argumento nomólógico-dedutivo, pois a premissa maior apresenta a lei putativamente universal de relações causais, a premissa menor as condições de limite em que a lei é aplicada e a conclusão de que os eventos realmente ocorridos são deduzidos da premissa (p.26);
.
- Distingue-se do modo como o historiador põe enredo em sua estória, pois naquele caso a estória é compreendida como de um tipo particular, fazendo com que os eventos ganhem uma coerência formal, tal como um cientista que identifica elementos nomológicos-dedutivos a partir dos quais fornece suas explicações. No caso da argumentação formal temos os elementos da matriz causal, que se presumem terem ocorrido em região específica de espaço e período específico de tempo. White, assim, assume a ideia de que o historiador faz, ao mesmo tempo, arte e ciência, apesar de podermos distinguir a representação “do que aconteceu” do “por que aconteceu como aconteceu”, da escolha de uma narrativa que apresente o caminho segundo o qual se passou de uma situação a outra recorrendo a leis de causação (p. 27);
.
- A história, no entanto, distingue-se das ciências porque os historiadores discordam justamente com relação a quais leis regeriam a causação social, leis sociais estas que serão invocadas para explicar certa sequencia de eventos. Enquanto as ciências naturais parecem avançar por meio de acordos quanto aos problemas científicos, a forma de explicação que devem assumir e os dados que podem ser considerados provas para a descrição científica da realidade, entre os historiadores não há concordância quanto a explicação histórica de qualquer conjunto de fenômenos históricos considerados. Sendo assim, a história recorre a diferentes pressupostos meta-históricos sobre a natureza do campo histórico, gerando diferentes tipos de explicação (p. 27-8);
.
- Seguindo Stephen C. Pepper (World hypotheses: a study in evidence) diferencia quatro paradigmas que apresentam o que é uma explicação histórica, considerada como argumento discursivo: formista, organicista, mecanicista e contextualista (p. 28);
.
a) Teoria formista da verdade: identifica as características dos objetos relativos ao campo histórico, sendo que a sua explicação está completa quando os objetos foram identificados nos atributos de classe, genéricos e específicos. Procura dissipar a identidade de todos os objetos do campo. Historiadores que lidam com essa perspectiva: Herder, Carlyle, Michelet dentre os historiadores romanescos e Niebuhr, Mommsen e Trevelyan entre narradores históricos. O objetivo central do trabalho do historiador é o próprio objeto, descrito em toda a variedade, colorido e vividez (p. 29);
.
- Na Nota 7, White afirma que as considerações que fez em relação a Frye na nota 6 aplicam-se aqui a Pepper e suas formas básicas de reflexão filosófica. Ressalta que filósofos como Platão, Aristóteles, Descartes, Hume, Kant, Hegel, Mill não se reduzem aos arquétipos definidos por Pepper. No entanto, quando os historiadores falam como filósofos, invocando alguma ideia geral em relação ao ser, tratam de teoria geral de verdade e de verificação. Neste sentido, os filósofos da história são mais “cognitivamente responsáveis” do que os historiadores, pois estes apenas adotam uma visão de mundo (p. 29);
.
- Segundo White, Pepper considera o formismo eminentemente dispersivo, pois em suas operações analíticas não se dispõe a realizar a integração, como é o caso de explicações organicistas e mecanicistas. Sendo assim, é ampla em seu alcance, mas as generalizações dos processos carecem de precisão conceitual (p. 30);
.
b) Hipóteses organicistas do mundo: são mais integrativas do que a formista e mais redutivas em suas operações. As descrições dos pormenores históricos são feitos com base em componentes sintéticos. Existe um compromisso metafísico com o paradigma a relação entre o microscópio-macroscópico, sendo as entidades individuais componentes que se agregam em totalidade maiores ou qualitativamente diferentes do que a soma de suas partes. Exemplo de historiador que opera nesta estratégia é Ranke e a maioria dos historiadores nacionalistas, das décadas dos meados do século XIX Von Sybel, Mommsen, Treitschke, Stubbs, Maitland etc. Também idealistas tais como Hegel (p.30);
.
- Pepper considera que tais historiadores estão mais interessados em caracterizar o processo integrativo do que os elementos individuais, dando o caráter abstrato aos argumentos. Ranke, por exemplo, resiste à ideia de fornecer um telos do processo histórico, mas oferece teloi provisórios e estruturas intermediárias, como “povo, nação e cultura”. White afirma que Ranke descreve eventos em sua particularidade e, neste sentido, seria representante do formismo. Mas, dada à estrutura e a coerência formal em suas explicações dos processos recorre ao modelo organicista (p. 31);
.
- As estratégias organicistas evitam a busca de leis do processo histórico, se estas são entendidas como relações causais universais e invariantes, tais como a física newtoniana, a química lavoisieriana ou a biologia darwiniana. Trata de princípios e ideias ao invés de leis, sendo aquelas que informam os processos, exceto os que orientação religiosa ou teológica que definem aqueles como agentes causais (p. 31);
.
c) Teoria mecanicista: também são integrativas dos objetivos , mas propensas a reduções e não a sínteses. Busca as leis causais que determinam os resultados dos processos no campo histórico, que governam a interação entre partes. Exemplos de mecanicistas: Buckle, Taine, Marx, Tocqueville (p. 30-2);
.
- O mecanicista da mesma maneira que o organicista é ameaçado pela mesma tendência para a abstração. Isto por que as entidades individuais perdem importância em relação às classes às quais pertencem e que, por sua vez, manifestam as regularidades presumidas nas leis. Tais leis representam aquilo que o mecanicista considera como explicação histórica e governam a história, tal como as leis da física governam a natureza (p. 32);
.
- Também os mecanicistas, tal como os organicistas, podem ser acusados de falta de alcance e de tendência para abstração. Partindo da perspectiva formista, mecanicismo e organicismo são redutores da variedade e do colorido das entidades individuais. Porém, resgatar esta extensão e concretude, além da opção do formismo, também está presente o contextualismo, cuja teoria da verdade e da explicação se apresenta como funcional do sentido ou da significação dos eventos do campo histórico (p. 32);
.
d) Contextualismo: considera que os eventos são explicados na medida em que são inseridos no seu próprio contexto, revelando relações específicas que guardam com outros eventos. Aqui, diferentemente do formismo que considera entidades em sua particularidade e unicidade, o contextualista concentra-se nas inter-relações funcionais entre os agentes e agências. Exemplos de filósofos modernos que adotam esta perspectiva são W. H. Walsh e Isaiah Berlin (chamam as inter-relações funcionais de coligação). Historiadores de Heródoto a Huizinga também, porém com mais expressividade em Jacob Burkhardt (séc. XIX) (p. 33);
.
- Procura evitar a tendência dispersiva do formismo e as abstrativas do organicismo e do mecanicismo. Como se referem a períodos determinados da história, suas explicações não tem caráter de leis universais, tais como as propostas pelo mecanicismo, nem mesmo princípio teológicos gerais propostos pelos organicistas. São interpretadas como relações reais, presumidamente existentes em tempos e lugares específicos, mas cuja causa primeira, final ou material não podem ser conhecidas (p. 33);
.
- Segundo Pepper o contextualista avança pelo isolamento de elemento do campo histórico como assunto de estudo, que pode ser tão amplo como a “Revolução Francesa” ou tão restrito quanto o dia de uma pessoa. As explicações (fios) que ligam o evento são tecidos em vários elementos do contexto, estendidos para fora (em direção ao espaço natural e social) e para trás determinando as origens do evento e para frente determinando seus impactos e influências (p.33);
.
- O enfoque contextualista é, assim, uma combinação da tendência dispersiva do formismo e integrativa que informa o organicismo, mas pretende ser modesta na medida em que o fluxo do tempo é considerado “ondulatório”, ou seja, com fases e culminâncias mais importantes que outras, tornando predominante a ideia de desenvolvimento e a evolução. Esta estratégia sincrônica de representação inclina-se ao mecanicismo ou ao organicismo quando tenta relacionar diferentes períodos estudados (p. 34);
.
- Séc. XIX, com a academicização há predominância do formismo e do contextualismo. Tendências organicistas e mecanicistas, como as representadas por Ranke e Tocqueville são consideradas lapsos em relação àquilo que a explicação histórica deve ser. Ou ainda, a explicação do campo histórico como as de Hegel e Marx, consideradas como queda na filosofia da história. O livro de Karl Popper Poverty of historicism denuncia exatamente estes dois modos de explicar o pensamento histórico (p. 34-5);
.
- Para White, a razão esta hostilidade dos historiadores em relação aos modos de explicação organiscista e metanicista permanece obscuro, a não ser que se busque razões extra-epistemológicas. Admitida a natureza protocientífica dos estudos históricos não há fundamento apodítico para a preferência em relação a um dos modos de explicação (p. 35);
.
- Há historiadores que defendem a posição de que a história deve se tornar científica, afastando, portanto, as influências do mito, da religião e da metafísica, o que implica afastar da prática historiográfica os posicionamentos organicista e mecanicista. Limitando-se, assim, aos modos formista e contextualista, a história permaneceria empírica, resistindo à filosofia da história como as praticadas por Hegel (organicista) e Marx (mecanicista) (p. 35);
.
- White considera, porém, que uma vez que a história é apenas uma protociência, essa hostilidade com o organicismo e com o mecanicismo não expressa mais do que um preconceito por parte do estabelecimento profissional. Estas estratégias apontam para elementos dos mundos natural e social que não podem ser apreciados a partir da perspectiva formista ou contextualista e, portanto, o comprometimento exclusivo com as dispersões próprias do formismo e do contextualismo isenta os historiadores da tentativa de integração dos dados própria das duas outras estratégias e implicam uma forma que a história deve assumir (p.35);
.
- Os críticos mais radicais dessa escolha apresentam-na como ideologicamente motivada. Por exemplo, para os marxistas, seria o modo de manutenção dos grupos sociais estabelecidos, pois a utilização do modo mecanicista de explicação histórica mostraria as leis reais do processo e da estrutura histórica, expondo o poder desfrutado pelas classes dominantes (p. 35);
.
- Assim, a concepção de história concentrada nos eventos individuais e suas relações com o contexto imediato apresenta vantagem para os grupos dominantes, pois enfatiza o individualismo dos liberais e as concepções hierárquicas dos conservadores. Por outro lado, os historiadores liberais também consideram as demais estratégias como ideologicamente motivadas, pois afirmam que as leis encontradas apontam para formas de transformação social em direção radical ou reacionária. Do mesmo modo, os filósofos idealistas quando apresentam o sentido da história (p. 36);
.
- Deste modo, parece haver elemento ideológico em todo relato histórico da realidade, o que, segundo White, decorre do fato de que a história não é uma ciência, sendo no máximo uma protociência com elementos não-científicos determináveis na sua constituição e que levam para diferentes concepções sobre o “presente”, podendo levar a diferentes possíveis projetos de como manter ou mudar sua forma (p. 36).