terça-feira, 16 de novembro de 2010

Comunicação XIV ANPOF - Thomas Kuhn e a historiografia não-factual da ciência




A comunicação a seguir foi apresentada em 07 de outubro de 2010, no evento XIV Encontro Nacional da ANPOF - Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (Águas de Lindóia, São Paulo). Esta comunicação é resultado do estudo de mestrado defendido no primeiro semestre de 2010, que realizei sobre a historiografia da ciência de Thomas Kuhn. O título completo da minha dissertação de mestrado em filosofia é O modelo da historiografia da ciência kuhniano: da obra a estrutura das revoluções científicas aos ensaios tardios e está totalmente disponível em versão digitalizada no seguinte endereço eletrônico:
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A apresentação a seguir está dividida em três partes: 1) Apresentação das linhas gerais da historiografia da ciência de Thomas Kuhn; 2) A analogia que Kuhn estabelece entre a atividade do cientista e a atividade do historiador em suas ideias historiográficas; 3) A questão da carga teórica e como ela é aplicada analogamente ao caso da história da ciência; e, finalmente, partiremos para as nossas considerações finais.
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Como o título de nossa apresentação já pode elucidar, nossa perspectiva é teórica. E, de modo ainda mais preciso, procuraremos mostrar que é possível retirar dos escritos kuhnianos uma teoria sobre a atividade histórica da ciência. Neste sentido, faremos, então, um metadiscurso, que se apoia nos textos de Kuhn, em especial A tensão essencial e A estrutura das revoluções científicas, para mostrar que este autor tem uma teoria da história que embasa sua análise do desenvolvimento da ciência. Porém, a proposta desta comunicação é mais modesta do que mostrar todo o sistema historiográfico deste autor, por pretendemos nos concentrar em um dos pontos da historiografia da ciência kuhniana, ou seja, especificamente quando a que este autor informa sobre a relação do historiador da ciência com as fontes que tem a sua disposição para realizar a narrativa histórica.
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Antes de adentrarmos propriamente no conceito e caracterização de história factual e não-factual, gostaríamos de contextualizar nossa análise. Nesta contextualização, apresentaremos a distinção que Kuhn observa entre as disciplinas história, filosofia e ciência, posteriormente nos concentrando na relação entre história e filosofia, haja vista a importância desta relação para a atividade do historiador da ciência. Sendo assim, no texto As relações entre a filosofia e a história da ciência (A tensão essencial, 1989) Kuhn informa que iniciou sua reflexão sobre as diferenças e semelhanças entre as disciplinas a partir da sua experiência docente em turma formada tanto por alunos da graduação em história, como por graduandos em filosofia. Observou que mesmo que seus alunos estivessem empenhados em ler e em comentar sobre os mesmos textos de história da ciência, sua postura e tipo de relação com o autor e com a obra era suficientemente distinta para que Kuhn visualizasse diferenças disciplinares, somando a estas a sua experiência pessoal como graduando e pós-graduando em física.
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Assim, considera que existem pelo menos quatro aspectos em que estas três disciplinas (física, história e filosofia) se diferem, sendo eles: o objetivo das disciplinas, o método de investigação, a composição de textos e, finalmente, o papel que a crítica desempenha em suas atividades. Nos concentrado agora nas relações entre a história e a filosofia, veremos que, para Kuhn, a história da ciência tem como objetivo a narrativa dos eventos do passado. Porém, não apenas isso, pois a narrativa deve tornar coerente a sucessão entre os eventos particulares. Quanto ao aspecto da metodologia, Kuhn observou que historiadores apresentam maior fidelidade aos textos que analisar, representando de modo mais fidedigno as ideias do autor, bem como o contexto em que tais ideias foram produzidas e mesmo as influencias anteriores e posteriores à produção da obra. Finalmente, outro ponto que vale a pena destacar é que, no caso da história, a composição dos textos é baseada em investigação prévia, sendo esta a compilação, a organização cronológica e a leitura e interpretação das fontes. Deste modo, quando o historiador produz o seu texto, qualquer fonte nova pode trazer grandes repercussões, levando a que o historiador reescreva o seu texto em nome da coerência entre os eventos apresentados.
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Por outro lado, a filosofia tem como objetivo característico de sua atividade a realização de generalizações, que, diferentemente das generalizações históricas, pretendem alcançar o grau de universalidade, ou seja, ser aplicáveis para o passado, o presente e o futuro. Além disso, é marca da metodologia desta disciplina a identificação das lacunas teóricas dos textos analisados, fazendo com que haja menos concentração nas próprias ideias do autor, pela concentração maior nas falhas de seu raciocínio. Desta maneira, a composição dos textos filosóficos, segundo Kuhn, surge quando o filósofo apresenta respostas àquelas lacunas encontradas no texto. Elucidando Kuhn, que o filósofo não realiza o mesmo tipo de atividade de pesquisa prévia à escrita de seu texto, quando comparado à análise das fontes históricas pelo historiador. Por fim, vale ressaltar também o papel que Kuhn atribui quase que exclusivamente para a filosofia, que é a crítica. Não que este autor considere que esta atividade seja exclusivamente filosófica, porém, observa que tanto na história, quando especialmente da física, a crítica não é bem vista pelos pares, ou seja, pelos outros historiadores e cientistas. Os primeiros por já se compreenderem desde o início realizando uma pesquisa “a partir do zero”, ou seja, constroem a narrativa coerente com contato direto com os textos. E, os segundos, por compreenderem a sua atividade fundamentalmente como contribuição pontual para o conjunto de conhecimento que a ciência apresenta e, poderíamos acrescentar, imaginando que a crítica provoca atraso no progresso contínuo da pesquisa científica.
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Em que pese os possíveis problemas desta caracterização kuhniana, que visualiza uma separação clara entre objetivo, metodologia, composição de textos e a função da crítica, Kuhn defende que história e filosofia permaneçam disciplinarmente distintas, vale dizer, com seus próprios departamentos, formas de legitimação do conhecimento produzido, além, é claro, dos quatro aspectos já abordados. Desta forma, Kuhn considera que o diálogo entre história e filosofia da ciência deve ser interdisciplinar e não intradisciplinar. E, nesta sua caracterização, está preocupado não apenas com o modo próprio de historiadores e filósofos desenvolverem as suas atividades, mas também que os graduandos de história e filosofia sejam treinados em seus próprios objetivos, métodos e formas de composição de textos. Assim, mesmo que uma mesma pessoa seja capaz de redigir textos históricos e filosóficos ela, na verdade, estaria atuando ora como historiadora e ora como filósofa.
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Passando agora para a segunda parte de nossa apresentação, trataremos da analogia que visualizamos quando Kuhn trata da história da ciência. Ou seja, consideramos que quando este autor trabalha a historiografia da ciência, ele assume, implicitamente, uma analogia entre a atividade científica e a atividade do historiador. A questão de fundo que informa esta analogia é o que em epistemologia da ciência costumeiramente é chamada de carga teórica da observação, que, por sua vez, é a consideração de que mesmo nas ciências que possuem objetos empíricos, tais com a física (em algumas de suas manifestações), o cientista nunca tem um acesso direto aos fatos, pois mesmo quando através de instrumentos realiza verificações ou testes de suas hipóteses, ele, na verdade, aplica diversas camadas teóricas sobre os “fatos”. Sendo assim, dentro de uma matriz de análise neo-kantiana (Kuhn localiza sua matriz de análise nesta corrente epistemológica) em que se está epistemologicamente consciente de que todo conhecimento dos objetos é mediado, não se tendo acesso imediato às coisas em si, sabe-se, desde logo, que mesmo as ciências empíricas não lidam com fatos puros.
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Deste modo, acreditamos que em sua análise da historiografia da ciência, Kuhn projeta esta ideia epistemologicamente informada pelo neo-kantismo, que em tese seria apenas aplicável para o contexto da produção de conhecimento científico, para a sua análise da atividade historiográfica. Do mesmo modo que o cientista, poderíamos afirmar, então, que o historiador também não lida com fatos puros, mas antes que as fontes de que se utiliza na sua narrativa, sejam elas texto, fragmentos arqueológicos, testemunhos etc, estão sempre sujeitas à interpretação. Aprofundando a analogia, vemos ainda que tanto a ciência, quando a história, nesta perspectiva kuhniana, postulam objetos independentes da teoria, ou seja, em que pese seus respectivos objetos de investigação estarem sujeitos à interpretação, existem limites para esta aparentemente ilimitada capacidade de construção. Kuhn, apresenta a ideia de que o mundo, ou a natureza, que é o objeto próprio da pesquisa científica, nem sempre se adéqua às prescrições teóricas que são feitas e, além disso, por vezes pode surpreender o cientista, com elementos naturais que nem sequer eram conhecidos (penso aqui em especial no exemplo do ornitorrinco, fornecido por Kuhn em O caminho desde a estrutura).
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Um terceiro ponto em que a analogia entre a história e a filosofia pode ser observada é o de que ambos realizam interpretação da linguagem. Vale dizer que, primeiramente, suas atividades são elas próprias erigidas por uma linguagem compartilhada entre os praticantes. No caso especial da ciência, Kuhn afirma que este aprendizado ostensivo dos conceitos e elementos de linguagem é uma etapa imprescindível para o aprendizado do próprio paradigma. O mesmo poderia ser dito no caso do historiador, que adentra em uma disciplina já constituída, a que chamamos história, que apresenta também seus próprios padrões linguísticos e subtrai legitimidade de discursos que não se adéquam a certa tradição narrativa. Entretanto, um ponto que teríamos mais reserva em afirmar a analogia entre a história e a filosofia da ciência, seria o de que o conceito que Kuhn observa de comunidade científica seria aplicável ao caso da história. Não apenas por causa do debate ainda não finalizado sobre a cientificidade da história, mas especialmente por duas consequências: a primeira, seria a de engessar a narrativa histórica em paradigmas, ou seja, aplicar a ideia de que mesmo a história deve apresentar modelo padrão de narrativa; e, a segunda, seria trazer para a história a mesma intolerância que Kuhn observa em relação às novidades para a ciência, sendo assim, atribuiríamos a normalidade da atividade científica, para o contexto da história. Não encontramos a princípio fundamentos teóricos para afirmar este ponto de que o conceito de comunidade científica seria também aplicável ao contexto da história, em que pese nos pontos anteriores, de que história e ciência não lidam com fatos puros, que postulam objeto independente da teoria e de que realizam interpretação da linguagem, nos parecem plenamente plausíveis.
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Já nos encaminhando para a terceira e última parte de nossa apresentação, gostaríamos de citar um trecho da obra La ciencia y el relativismo de Larry Laudan, em que este autor afirma sobre o relativismo, incluindo neste conjunto a epistemologia que informa a obra de Kuhn, que mesmo a evidência empírica aparentemente não problemática está carregada de teoria. E, mesmo as escolas epistemológicas que debatem com o relativismo, vale dizer, o positivismo, o realismo e o pragmatismo, admitem que a observação é carregada de teoria. Nos atendo exclusivamente neste ponto de concordância entre estas diferentes escolas epistemológicas, poderíamos supor que as críticas kantianas quanto à possibilidade do conhecimento direto das coisas, é traduzido para o contexto da filosofia da ciência na compreensão de que o evento é sempre interpretado. E, esclarecendo este argumento, introduz a participação direta do sujeito na produção do conhecimento, mesmo naquelas disciplinas mais empíricas.
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Assim, no caso específico da história da ciência, tal com compreendida por Kuhn, o pressuposto de base é de que o historiador não lida diretamente com fatos e, portanto, poderíamos classificar a sua historiografia da ciência como não-factual. Uma vez que mesmo naquelas atividades em que aparentemente o sujeito de conhecimento está mais ausente, por exemplo, na compilação e na escolha das fontes históricas, já está presente o elemento das crenças teóricas do autor e, portanto, a interpretação. No quadro a seguir, podemos visualizar de modo mais patente as ideias que apresentamos, pois, como é possível observar, o historiador (sujeito de conhecimento), está no centro da relação, intermediando fonte e fato histórico. Deste modo, quando realiza a análise das fontes, ele está teoricamente informado. No caso da história da ciência, poderíamos dizer, o sujeito possui um conceito de ciência e preconcebe como esta se realiza internamente (pesquisa) e se relaciona externamente (sociedade, economia, política etc). Além disso, é apenas depois desta atividade de interpretação, que podemos afirmar que os fatos históricos são constituídos, com o cuidado de informar que podem não permanecer os mesmos, ou seja, os fatos históricos são eles mesmos passíveis de interpretação, seja pela influência de descoberta de novas fontes, seja pela discordância de outros historiadores em relação à interpretação anteriormente realizada.
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Resumidamente, e já nos encaminhando para nossas considerações finais, gostaríamos de afirmar que a historiografia da ciência de Kuhn não determina a metodologia mais fina para a história da ciência. Vale elucidar: afirma o relevante papel da interpretação na análise das fontes, mas não se presta a averiguar os critérios desta mesma interpretação ou como os critérios são formados. Além disso, reconhece três pressupostos que direcionam a atividade do historiador da ciência que, por sua vez, dirigem a atividade de seleção, de interpretação e de narrativa com sentido. Sendo que, nesta apresentação, nos concentramos em apenas um destes pressupostos, ou seja, na relação que Kuhn estabelece entre história e filosofia da ciência. Também é necessário relembrar que a matriz neo-kantiana que informa tanto a perspectiva de Kuhn sobre a atividade científica, quando a sobre a atividade do historiador, estabelece uma relação direta entre o objeto de conhecimento (ciência/fonte) e o sujeito de conhecimento (historiador/narrador), de tal sorte que poderíamos dizer que os pressupostos filosóficos implicam em imagem determinada da ciência.

4 comentários:

Fernanda disse...

Eu não tenho certeza se entendi, mas gostei muito que tenha postado!! Obrigada por dividir seu trabalho com a gente =)
Ainda lerei novamente e veremos o que consigo entender XDDD~
Bjs!!

Débora Aymoré disse...

Fernanda. Em primeiro lugar, obrigada por comentar no meu blog. É sempre estimulante perceber que as pessoas efetivamente se interessam pelo que nós estudamos e escrevemos, além do que impede que fiquemos muito atralados a certo "solipcismo acadêmico", ou seja, mantendo-nos em nosso núcleo de interesse especializado, sem comunicação com os demais. Obrigada, de verdade. Em segundo lugar, creio que não expliquei suficientemente bem o assunto proposto, o que pode ter gerado algum tipo de incompreensão de sua parte. Por favor, se não for pedir muito, indique para mim explicitamente seus pontos de dúvida, para que eu possa respondê-los diretamente. Agradeço novamente pelo seu interesse. Abraço, Débora.

Unknown disse...

Débora querida,

Parabéns pelo blog! Hoje entrei pela primeira vez de maneira mais detida, e quanta coisa interessante encontrei! Voltarei mais tantas outras vezes para aprender e trocar mais com você!
Grande beijo
Dani

Débora Aymoré disse...

Dani, obrigada pelo seu apoio. Ele é muito importante. Estou com algumas postagens atrasadas, mas espero que você compreenda: é o excessso de atividades no final do semestre. Porém, assim que as férias vierem, pretendo atualizar. Visite o blog sempre que puder, deixe comentários, críticas ou mesmo apenas um "oi", eles alimentam minha iniciativa de manter este espaço de comunicação virtual. Beijo.