terça-feira, 16 de novembro de 2010

Comunicação III CIFCyT - Continuidade e descontinuidade no progresso

A comunicação a seguir foi apresentada em 06 de setembro de 2010, no evento III Congreso Iberoamericano de Filosofia da Ciencia y de le Tecnología (Buenos Aires, Argentina). Considero que esta é uma primeira abordagem do problema da continuidade aplicada ao contexto da história da técnica. O título completo da comunicação é Continuidade e descontinuidade no progresso: sobre a diferença entre o desenvolvimento científico e o desenvolvimento técnico a partir da perspectiva historiográfica. Espero que apreciem os elementos reflexivos que apresento. Apesar de ter apresentado com slides, ainda não domino a técnica de como disponibilizá-los no blog, desculpem-me.
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O.o0o.O
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Consideremos, em primeiro lugar, que o processo de desenvolvimento histórico nem sempre supõe a ideia de progresso. Deste modo, afirmaremos como progressivo aquele conjunto de eventos do passado que guardam conexão com eventos do presente e que se projetam, pelo menos enquanto tendência, para um futuro. Estando o historiador situado sempre no presente ao narrar eventos que já aconteceram no passado, ele terá que fazer uso de determinadas fontes que apoiem a narrativa que faz, de modo a tornar coerente a sucessão de eventos narrados. No entanto, partindo da perspectiva cognitivamente responsável da filosofia histórica da ciência, devemos levar em consideração que tanto a compilação, a organização e a narrativa expressa serão feitas a partir da percepção que o historiador tem sobre a história. Assim, em segundo lugar, postulamos a relação entre a filosofia e a história da ciência, na medida em que a depender da compreensão que se tenha da ciência e do tipo de desenvolvimento histórico que ela apresenta (aspecto filosófico ou formal), teríamos diferentes modos de narrar a sua história (aspecto histórico ou material).
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Neste sentido, afirmamos que a história, mesmo quando compreendida como progressiva, pode não apresentar uma direção ascendente, tal como, por exemplo, quando supomos que as teorias científicas do presente são melhores que as teorias do passado e, portanto, mais próximas da verdade. Aliás, a ideia de progresso pode comportar pelo menos três pressupostos diferentes quando aplicada ao contexto da história da ciência: (1) progresso científico cumulativo, prescreve um crescimento contínuo, seja pela correção ou pelo acréscimo de observações, de explicações ou de conteúdo empírico às teorias anteriormente dadas na ciência; (2) progresso não-cumulativo, prescreve que o desenvolvimento da ciência ocorre através de rupturas com a acumulação de conhecimento anterior, devido à substituição de teorias ou de paradigmas que regravam a atividade de pesquisa científica; teríamos ainda uma terceira possibilidade que é a ideia de que o progresso científico ocorre ora por acumulação e ora por rupturas, progresso este a que chamaremos de (3) misto. Esta terceira forma de compreensão do progresso científico é, em última instância, uma combinação das duas anteriores, mas que se dão diacrônicamente uma em relação à outra, ou seja, ou a ciência apresentará em um dado período histórico a acumulação de conhecimento ou o seu contrário, deste modo, um momento de ruptura.
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É preciso notar que na opção historiográfica realizada entre compreensão da ciência como progresso cumulativo ou não-cumulativo, subjaz uma série de outras opções historiográficas feitas pelo historiador, consciente ou não de que realiza tais opções. Escolhi para esta apresentação três escolas clássicas da epistemologia científica, nomeadamente o empirismo, o falseacionismo e o relativismo, sendo que para cada uma destas filosofias da ciência, tentei definir quais seriam as opções historiográficas implícitas quanto às fontes, quanto à atividade científica, quanto ao objetivo da atividade científica e quanto à relação que estabelece entre os três elementos anteriores (fonte, atividade e objeto) e o progresso histórico.
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Sendo assim, é possível notar que, partindo das perspectivas empiristas denominadas ingênuas, a fonte da atividade científica é o evento, fato ou fenômeno. Além disso, todo evento é entendido como um dado, ou seja, algo capaz de fornecer por si só conhecimento acerca da natureza. Deste modo, a atividade empregada prioritariamente na pesquisa científica é a observação e os sentidos de um modo mais geral. Assim, o objetivo a que se almeja alcançar com a observação dos fatos que informam conhecimento sobre a natureza é a verdade, pois nesta forma primeira de epistemologia da ciência, ainda não se está questionando a possibilidade de alcançar o conhecimento certo sobre a natureza, acredita-se, portanto, no potencial compreensivo da razão e no potencial informativo da realidade. É possível notar que o principal representante desta epistemologia empirista ingênua é Francis Bacon.
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Quanto à segunda escola epistemológica, ou seja, a falseacionista, ela compreende que a atividade científica baseia-se prioritariamente em hipóteses. É preciso notar aqui a inversão da atenção, pois enquanto no empirismo a atenção está voltada para os fatos e às informações que podemos obter a partir deles, no falseacionismo a atenção está voltado para o método de produção do conhecimento. Nesta epistemologia falseacionista, já está presente a suspeita em relação ao conhecimento direto da natureza, sendo este conhecimento construído de modo indireto através da mediação realizada pelo método científico. Em outras palavras, quanto mais aperfeiçoado o método, mais correto será o conhecimento produzido a partir de sua aplicação. O filósofo da ciência Karl Popper, principal expoente desta epistemologia, parte da crítica do verificacionismo, entendendo que o cientista deve recorrer aos fatos não para confirmar suas teorias, mas para “desconfirmá-las”. Sendo assim, o cientista cria teorias para explicar determinados fenômenos, deduz delas hipóteses (H1, H2, H3 etc) e confronta cada uma delas com fatos. Será melhor a hipótese mais testada, ou seja, aquela que mais resistiu à confrontação empírica. Deste modo, é possível notar que a atividade principal de pesquisa é o teste das hipóteses e, buscando alcançar objetivo aparentemente mais exequível que a verdade, coloca como objetivo mais modesto que aquele a verossimilhança. Assim, a relação que se estabelece entre a fonte, a atividade científica e o objetivo a ser alcançado pela pesquisa, leva a ideia de progresso histórico por meio da superação.
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Finalmente, quanto a terceira e última escola epistemológica que abordaremos em nossa apresentação, temos o chamado relativismo. Muito embora esta caracterização relativista seja tomada pelos próprios representantes desta epistemologia como pejorativa, utilizamos aqui no estrito sentido de que esta epistemologia está localizada no ponto mais extremo da desconfiança em relação à capacidade de a ciência alcançar algo a que podemos chamar uniformemente de verdade, uma vez que observa na sucessão histórica entre teorias, métodos e objetos de investigação cientifica, indício suficiente para afirmar que se é que existe alguma verdade a ser alcançada pela ciência, ela deve ser compreendida de maneira local e historicamente determinada, ou seja, em um grupo, instituição, espaço e tempo singulares, de modo que o que seria verdade para determinado grupo, pode supostamente ser considerado como falso por outro.
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Assim, o relativismo epistemológico aplicado ao contexto científico, considera que tudo o que a ciência faz em sua pesquisa é uma tentativa de aproximação coerente entre a teoria (ou hipótese, ou paradigma) e os fatos (entendido aqui em sentido empírico, uma vez que postula a independência do mundo em relação às teorias científicas). Além disso, a aproximação entre a teoria e o fato é realizada segundo um problema anteriormente dado como legítimo e relevante pelos cientistas. Desta maneira, afirmamos que a epistemologia relativista considera que a atividade específica da ciência é a resolução de problemas, que, na realidade, ocorre tanto na aproximação entre teoria e fato, como no ajuste da teoria ou do paradigma, uma vez que este não se apresente conforme os eventos empiricamente dados. O que seria considerado como hipótese ad hoc para a epistemologia falseacionista, ou seja, a modificação da teoria para melhor se adequar aos fatos, é aqui considerado um procedimento normal da ciência. Portanto, o objetivo da atividade científica para a epistemologia relativista é a coerência entre a teoria e o fato, abandonando em grande medida objetivos que sejam externos à própria atividade científica, o que incluiria a ideia de verdade uniformemente dada para todo e qualquer objeto de investigação. Finalmente, a relação que é possível visualizar a partir da análise da fonte, da atividade e do objeto da investigação científica é tanto a de acumulação quanto a de não-acumulação, a depender de se em um dado momento considerado a ciência se desenvolve por acréscimo ao conjunto de conhecimentos anteriormente dados, ou passa por momento de ruptura em relação aos próprios pressupostos de investigação. Para Thomas Kuhn, o principal expoente desta epistemologia relativista, estes momentos de mudanças dos pressupostos são chamados de revoluções científicas.
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Dados estes elementos que analisamos nas epistemologias empirista, falseacionista e relativista, podemos afirmar que a narrativa histórica da ciência pode ser considerada ou não progressiva, que esta progressão é, por sua vez, compreendida ou como cumulativa, não-cumulativa ou mista, mas, finalmente, a própria escolha entre uma e outra perspectiva sobre o desenvolvimento histórico da ciência supõe outras opções historiográficas, tais como a compreensão do historiador acerca da fonte, da atividade e do objetivo da atividade científica, para melhor compreendermos os pressupostos historiográficos, ou seja, aquela filosofia da ciência que informa (ou mesmo determina) a narrativa dos eventos científicos.
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Passando agora para a segunda parte de nossa apresentação, analisaremos a seguir uma aplicação particular da ideia de progresso científico, que é aquele que podemos observar na história da ciência e na história da técnica. A análise que apresentaremos a seguir é preliminar, porém já aponta para alguns direcionamentos interessantes sobre semelhanças e diferenças entre história da ciência e história da técnica. Sendo assim, seguiremos em nossa apresentação a sequência: 1) História da técnica e continuidade; 2) História e a relação com o tempo; e, 3) Conclusões preliminares.
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A primeira pergunta que nos pareceu interessante na tentativa de aplicar a mesma reflexão sobre os pressupostos historiográficos da ciência à história da técnica é, no caso da história da técnica, a continuidade do progresso seria em relação a que? Esta pergunta, por sua vez, nos remete ao próprio conceito de técnica, que, usualmente, tem sido entendida ou como arte ou ofício, restringindo os objetos à uma das duas opções; ou técnica é compreendida em um sentido mais lato, compreendendo a relação entre esta atividade com o contexto social e a visão de mundo de seus atores. Partindo desta perspectiva mais lata, podemos afirmar que especificamente quanto a compreensão do tempo, elemento essencial para a história, podemos afirmar que existe uma distorção, ou melhor, uma aceleração do tempo da técnica em relação ao tempo social, aceleração esta apresentada por Jüergen Habermas em O futuro da natureza humana.
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Deste modo, podemos identificar que o tempo da técnica está associado às ideias de aceleração e de inovação, dado, por exemplo, a constante pressão de substituição de uma tecnologia por outra, mesmo que a técnica anteriormente aplicada ainda funcione. Exemplo disto é a substituição dos aparelhos celulares por opções mais novas, que muitas vezes trazem maior número de modificações estéticas do que propriamente técnicas. Por outro lado, o tempo social está relacionado com o tempo de legitimação e de compreensão. Porém, aqui enfrentamos um problema marcante ao tratar da técnica, pois a excessiva especialização do conhecimento e o seu patenteamento, muitas vezes prejudicam o acesso deste conhecimento pela sociedade em geral. Muito embora vejamos a dificuldade adicional que estes elementos trazem para a compreensão social das técnicas atualmente utilizadas, consideramos que o esforço para torná-las até certo ponto públicas, é necessário não apenas em termos cognitivos, mas principalmente por ser a sociedade em geral (usualmente denominados como consumidores) os destinatários finais da produção técnica. Sendo assim, considerando o contexto político geral democrático, para que esta aplicação seja considerada legítima o esforço de elucidação não é apenas uma gentileza, mas antes uma obrigação.
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Podemos, finalmente, apresentar dois exemplos de técnicas que fundamentalmente são aplicadas na pesquisa de algumas ciências, mas que fogem quase por completo do conhecimento público, especialmente em relação aos riscos de sua aplicação. O primeiro exemplo, retirado da obra de Habermas referida, é a do Diagnóstico genético pré-implantação, que seria um estágio de desenvolvimento avançado da busca pelo mapeamento e pela influência direta no genoma humano. Segundo Habermas, pessoas que ainda não nasceram e que poderiam ter o seu material genético alterado por conta de decisões de seus pais, perderiam em grande medida a compreensão de sua autonomia, o que teria consequências para a sua autocompreensão como ser livre e responsável por suas ações. O segundo exemplo, retirado da obra de Hugh Lacey em Valores e atividade científica 1, é o da aplicação das sementes transgênicas de trazem grandes impactos sociais, além de ambientais, uma vez que retira a necessária biodiversidade em relação à algumas espécies, por exemplo, a soja, fazendo com que Lacey considere a necessidade de maior pesquisa sobre os riscos desta técnica antes de ela ser efetivamente aplicada em seu contexto social (neste caso, em contraposição ao laboratorial). Assim, no primeiro exemplo, temos consequências destacadamente individuais quanto à aplicação de técnicas sem que haja adesão e legitimação dos seus destinatários e, no segundo caso, consequências sociais.
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Esta distorção, ou diferença de formas de temporalidade, quando analisamos exclusivamente o caso da relação entre o tempo da técnica e o tempo social, deve ser levada em conta pelo historiador da ciência, quando da tentativa de aplicar os mesmos pressupostos historiográficos da ciência para a análise da história da técnica. Além disso, e já nos encaminhando para nossas conclusões preliminares, podemos afirmar pela análise feita que, tanto a história da ciência, como a história da técnica, podem ser compreendidas como contínuas, sendo, portanto, aplicável a categoria historiográfica da continuidade para a história da técnica. No entanto, a continuidade assim considerada se dá através de uma restrição de seu objeto, uma vez que a técnica não poderá ser compreendida pelo historiador em todas as manifestações em que ela já foi compreendida, mas se atendo as formulações do período histórico que o historiador analisa. E, finalmente, ao fazermos o exercício de ampliação do conceito de técnica para abarcar, além dos elementos técnicos propriamente trabalhados pela ciência, veremos que mesmo estes guardam uma relação com seu contexto humano e social, que torna o elemento da continuidade mais complexo, uma vez que a própria produção e aplicação de técnicas no contexto social estaria sujeito à legitimação dos seus destinatários. Sendo assim, vemos em autores tais como Habermas e Lacey, a dependência dos avanços técnicos de decisões legítimas na sociedade, o que pode refrear ou alimentar o desenvolvimento técnico. Portanto, para o historiador contemporâneo não basta a restrição de seu objeto de investigação técnica apenas ao contexto laboratorial, ou seja, aquele em que a técnica é efetivamente produzida, mas antes uma consideração mais ampla, que leve em conta pelo menos os contextos econômicos, políticos e sociais que levam ou não à aplicação de determinadas técnicas na sociedade.

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