domingo, 24 de outubro de 2010

Palestra na ANPOCS: A imagem de desenvolvimento da ciência, Parte 1


Escrevo diretamente de Caxambu (Minas Gerais), que, apesar de nos ter recebido no domingo com sol forte, no final da tarde decidiu amenizar o calor com chuva. Para quem anualmente participa do evento, provavelmente será fácil imaginar que estou em Caxambu para participar do 34º ANPOCS - Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais.
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Na verdade, é a primeira vez que participo deste evento e, coincidentemente, em atividade também nova na programação. Trata-se do Projeto TEM - Circuito de Ciência e Tecnologia. A ideia é permitir a interação entre o público e as diversas ciências em atividades que ocorrerão em 12 estações distribuídas em pontos estratégicos da cidade. Assim, a interação será com público de faixa etária e de formação diversas.
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Particularmente quanto à atividade que me coube, será uma palestra com o título A imagem de desenvolvimento da ciência. Minha palestra faz parte da programação "Conversando com a ciência", que também terá palestras com Prof. Dr. Pablo Mariconda (Filosofia/USP), que ministrará A astronomia moderna e a dissolução do cosmo antigo e medieval, Prof. Dr. Claudemir Tossato (Filosofia/UNIFESP), que ministrará Astronomia e cosmologia em Brahe e Kepler e Prof. Dr. Maurício Ramos (Filosofia/USP), que ministrará O ser vivo.
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Nesta breve postagem, além de apresentar a atividade, falarei um pouco sobre o tema que me coube, para que na Parte 2 de minha postagem possa falar com mais detalhes sobre o conteúdo e a reação do público ao mesmo. Bem, como alguns de vocês já sabem, estudei no mestrado a historiografia da ciência de Thomas Kuhn, em especial as teses que este autor defende desde a obra A estrutura das revoluções científicas até os ensaios tardios publicados na compilação O caminho desde A estrutura. Como a palestra está direcionada a público diverso e provavelmente não especializado, considerei melhor apresentar a imagem de desenvolvimento da ciência de Kuhn, como forma de moldar uma primeira perspectiva sobre a ciência nos ouvintes.
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Deste modo, seguirei o seguinte roteiro: 1) Breve apresentação sobre o Thomas Kuhn e a obra A estrutura das revoluções científicas; 2) Apresentar os modos de análise da ciência: o tradicional e o relativo à nova história da ciência; 3) Apresentar a ideia de que a ciência se desenvolve em fases sucessivas, que passa de um período pré-paradigmático ao período paradigmático; 4) Caracterizar os períodos pré-paradigmático e paradigmático; 5) Relacionar o período paradigmático com ciência normal e com os episódios de revolução científica; 6) Apresentar a ideia de que talvez existam diferentes "revoluções" na história da ciência, sendo a que ocorreu nos séculos XVI e XVII apenas uma delas; 7) Reforçar a importância do conceito de paradigma; 8) Apresentar alguns problemas de sua aplicação, especialmente com relação às chamadas ciências humanas e sociais.
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Concluirei afirmando que a ciência é um objeto histórico e, portanto, sujeito a mudanças. Sendo que a educação paradigmática não apenas fixa um modo de realização da ciência, como introduz o cientista em formação uma nova linguagem (distinta da cotidiana), método (para realização da pesquisa) e mesmo à visão de mundo distinta (relativa aos seres que interessam à pesquisa científica), que são compartilhados pela comunidade científica.
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O0.0.oO

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Ensaio sobre "O estrangeiro" ou é possível ao homem acostumar-se com tudo?



oo.OoO.oo
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No domingo passado, dia 10 de outubro de 2010, aproveitando o feriado prolongado em São Paulo, tive a oportunidade de assistir à peça "O estrangeiro", baseada na obra de Albert Camus, com belíssima atuação de Guilherme Leme e direção de Marisa Holtz. Quem estiver em na terra da garoa, vale conferir: http://www.livrariacultura.com.br/teatro/o_estrangeiro.asp
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Bem, mas meu propósito na postagem não é apenas o de fazer propaganda, na verdade ao assistir a peça pude lembrar da experiência que tive ao ler esta obra. O personagem central, Meursault, inicia a narrativa de alguns fatos recentes de sua vida, vestindo-se para o público (na peça, o ator veste terno completo, como se aprontando para ir ao trabalho) e ao mesmo tempo despindo-se, ao relatar o que se passa em sua alma.
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A trama pode até ser considerada simples. Um homem recebe mensagem de um asilo de que sua mãe está morta, chamando-o para o funeral. Ao chegar lá, nega-se a ver o corpo, dorme durante as horas em que o corpo é velado e não derrama lágrimas por sua genitora. Tudo se passa com bastante tranquilidade em que pese o personagem não parecer especialmente indiferente ao ocorrido, pois se desloca até o asilo, bem como procura justificar porque mantinha sua mãe naquele local.
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A justificativa que Meursault atribui é a ausência de dinheiro, sendo a permanência de sua mãe no asilo aquilo que de melhor ele poderia lhe oferecer. De qualquer modo, agora que já prestou a última homenagem a sua mãe, Meursault retorna para sua casa e para a sua vida normal. No dia seguinte ao funeral, encontra Marie na praia. Uma jovem que lhe parece especialmente atraente, com quem inicia relacionamento.
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A história toma ares mais densos quando Meursault trava relação com seu visinho Raymond, pessoa de caráter duvidoso que afirma para todos que é comerciante, quando na verdade se trata de um cafetão. Este, enciumado pela ideia de ter sido traído pela amante, a espanca. Depois do que pede para que Meursault escreva-lhe uma carta e que testemunhe que de fato a moça o havia traído. O envolvimento de Meursault com o caso, tomando partido de Raymond, causa boa impressão neste que o convida para fim de semana em uma cabana na praia. Convite a que Meursault aceita após confirmar que Marie poderia acompanhá-lo.
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É neste fim de semana que a vida de Meursault acaba por se modificar radicalmente. Diante do árabe que pertencia ao mesmo grupo que a garota espancada por Raymond e que estava ali para um acerto de contas, Meursault atira mais de uma vez nele, assassinando-o. Meursault é preso e processado pelo crime que cometera, sem, no entanto, demonstrar arrependimento em relação ao feito. Atribui o acontecido ao Sol, pois no dia em que matou, aquele estava excessivamente quente e o brilho dos raios o incomodavam.
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Durante o processo, que é noticiado pela mídia, Meursault começa a ser questionado por vários aspectos de sua vida: sobre sua reação (ou falta de) à morte da própria mãe, sobre sua relação com Marie (iniciada no dia seguinte de seu retorno do funeral), sobre sua relação com Raymond e com o caso da amante que fora espancada. Ao que parece, as pessoas a sua volta o julgam insensível, pessoa com a alma vazia, incapaz de chorar pela morte da mãe e capaz de matar outro ser humano sem demostrar sinal de arrependimento.
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Meursault parece assistir o seu próprio julgamento com indiferença. Como indiferente era para ele o seu relacionamento com Marie, exceto talvez quando a desejava e saciava seu desejo. Procurava mostrar a todos a sua volta o quão normal era: achava que amava a mãe, como todo mundo; mantinha um relacionamento, um emprego, vivia a sua vida, enfim. Mas, eis que o acaso, um acontecimento fortuito (como o raio de Sol refletido na faca impunhada pelo árabe e que atinge os seus olhos) o torna assassino. Seria o acaso ou a indiferença o verdadeiro motivo da mudança operada na vida de Meursault?
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De fato, mesmo antes do julgamento Meursault já apresentava sinais de indiferença em relação ao mundo à sua volta e mesmo em relação às pessoas com que travava conhecimento. Mas, o que o faz manter emprego e um relacionamento? Para alguém que seja indiferente não pareceria razoável esperar tamanho esforço e compromisso. Parece, então, que o primeiro Meursault, aquele de antes do assassinato, ainda aspira algo em relação à vida, nem que seja certa dose de normalidade e de aceitação social.
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Depois do primeiro Meursault, podemos notar dois momentos de ruptura que levarão ao segundo Meursault: o da ruptura social e o da ruptura interna. Quanto marco de ruptura social, não o localizo exatamente no assassinato, que tem a sua importância para o enredo, mas nem tanto para a pensonagem. Quero dizer que por mais que tirar a vida de outro ser humano seja algo suficientemente grave, Meursault parece encarar com estranha normalidade, como uma ação entre outras, como vestir ou despir a roupa, como andar na praia, casualmente portar uma arma e atirar em alguém. Parece-me que a verdadeira ruptura social ocorre no julgamento pelo qual passa, onde todos passam a vê-lo como assassino e não mais como membro da sociedade.
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Observando, então, o próprio julgamento, Meursault se questiona por que o juiz, os advogados de defesa e de acusação, o juri e demais presentes não perguntam sua opinião sobre o caso, já que lhe parece seria ele a pessoa mais indicada para explicá-lo. A questão é que o processo já possui seus ritos e sendo Meursault, ou o assassino do próprio pai que seria julgado na sessão seguinte do tribunal, ambos seriam tratados da mesma forma. A igualdade entre os dois criminosos os tornam diferentes em relação à sociedade, o que leva Meursault à percepção da diferença que mantinha em relação aos demais.
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Ele passa a se perceber como presidiário e, em suas próprias palavras, é fácil acostumar-se com aquela vida. Pouco há para fazer no contexto de limitação da liberdade e, aquele que agora sonha com a praia e com Marie, será levado pelo mesmo ritmo do hábito, da passagem das horas e do tempo, a se perceber como criminoso. É após sua condenação à execução pública que ocorre o segundo momento da ruptura, àquela que denominei de interna. Esta ocorre quando finalmente Meursault permite que o padre venha vê-lo após várias negativas. Ao ouvir sobre o arrependimento e perdão, o condenado já não está disposto a esconder suas verdaderias inquietações. Acaba de ser condenado por homens que antes o tratavam como igual e duvida que o além possa lhe causar maior conforto.
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Agora sim, tudo é indiferente. De que vale a mãe de Meursault ter sido feliz nos anos em que esteve no asilo e por isso seu filho não ter encontrado motivos para chorar em seu funeral? De que vale ter sido um cidadão exemplar, mantendo emprego e buscando até certo ponto a estima de seus semelhantes? De que vale ter sido sencero, afirmando os motivos que verdadeiramente considerava terem sido os que motivaram o crime que cometera? De que vale, enfim, ter sido perfeitamente adequado durante toda a sua vida se, na verdade, sempre fora diferente. Apresentando uma perspectiva de vida que contrariava as expectativas gerais ao considerar indiferente aquilo a que ele próprio se dedicava em sua vida.
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Não me parece que seja exatamente isso. Acho mesmo que Meursault (o primeiro) ainda encontrava meios e motivos para agir, procurando ser igual a seus semelhantes. No entanto, é na sucessão das rupturas social e interna que ele se torna o segundo Meursault. Não que ele próprio tenha alterado o modo como via a vida. O que aparentemente acontece é que a sociedade não encontra mais lugar para ele na normalidade, uma vez que ele cometeu ato socialmente avaliado como negativo. O segundo Meursault assume para si, então, o papel até certo ponto de um mártir social, ou seja, aquele que está disposto a adequar-se mesmo nas piores circunstâncias. Deixa-se julgar e aceita o julgamento. E, o que ele consegue com isso? Aparentemente a saída do mundo.
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A peça ou a obra "O estrangeiro", para aqueles que tiverem o ânimo de ler, levanta questões que podem beirar reflexões profundas sobre as aspirações humanas. Alguns pares de questões podem ser levantadas, tais como: a relação entre adequação e inadequação social; a relação entre auto-percepção e percepção social; a relação entre hábito e auto-percepção; a relação entre liberdade individual e restrição social. Podemos ver a obra de diversas perspectivas, o que seria equivalente a analisar a alma humana também sobre diferentes olhares, fazendo do texto espelho (mesmo que apenas como exercício hipotético-experimental) da alma.

domingo, 10 de outubro de 2010

Resenha – White, Hayden. Meta História – Introdução (p. 36-43)

Obra: White, H. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. Tradução de José Laurênio de Melo. 2 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

Obs: Para ler a segunda parte desta resenha, acessar a postagem Resenha - White, Hayden. Meta-História - Introdução (p. 26-36), de 19 de setembro de 2010.

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Explicação por implicação ideológica
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- As explicações ideológicas refletem o elemento ético do historiador, decorrentes da posição pessoal que assume em relação à natureza do conhecimento histórico e as implicações que podem ser inferidas dos acontecimentos passados para o entendimento do presente. White define “ideologia” como conjunto de prescrições para a tomada de posição no mundo presente da práxis social e atuação sobre ele (para mudá-lo ou para mantê-lo). As prescrições são acompanhadas de argumentos que arrogam autoridade da ciência ou do realismo. Nesta análise, White acompanha as ideia de Karl Mannheim Ideology and Utopia, postulando quatro posições ideológicas básicas: anarquismo, conservadorismo, radicalismo e liberalismo. Afirma ainda que existiriam outras posições possíveis, como o apocalipticismo, o reacionário e o fascista, cuja essência está no autoritarismo, respectivamente, em relação a “revelação divina”, a prática de uma classe ou de um grupo como sistema eternamente válido de organização social e a autoridade indisputada do chefe carismático (p. 36-7);
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- Nota 11: White considera que o anarquismo é a implicação ideológica do romantismo do séc. XIX, do mesmo modo que o romantismo alimentou o fascismo do século XX. Já o conservadorismo não aprova uma visão anárquica do mundo e nem uma concepção radical. Pretende, assim, a defesa do status quo como elemento de uma unidade orgânica, que anarquistas e radicais sonham em promover (p. 37);
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- Os quatro posições ideológicas básicas tem em comum o fato de apresentarem sistemas de valores que revindicam a autoridade da razão, da ciência ou do realismo. Sendo assim, são epistemologicamente conscientes de um modo que os sistemas autoritários não o são, empreendendo esforço para analisar os dados do processo social, tal como vistos pelas perspectivas alternativas. Sendo assim, as formas oitocentistas de anarquismo, conservadorismo, radicalismo e liberalismo são “cognitivamente responsáveis” (p. 38);
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- Nota 12: Pepper afirma que “cognitivamente responsável” é o sistema filosófico comprometido com a defesa racional de suas hipóteses de mundo (p. 38);
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- White afirma que as quatro posições ideológicas possíveis que adotará representam uma preferência ideológica geral e não partidos políticos específicos. São diferentes atitudes em relação à possibilidade de redução do estudo da sociedade a uma ciência e à própria desejabilidade de fazê-lo, diferentes noções das lições que podem ser ministradas pelas ciências humanas, concepções sobre a direção das mudanças e diferentes orientações temporais, que levam a compreensão de passado, de presente e de futuro segundo a forma ideal de sociedade. Embora essa posição ideológica possa não ser conscientemente assumida pelo historiador. Citação: “Assim como toda ideologia é acompanhada por uma ideia específica de história e seus processos, toda a ideia de história é, também afirmo, acompanhada por implicações ideológicas especificamente determináveis” (p. 38);
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- Com relação ao problema da mudança social: é inevitável para as quatro concepções, embora apresentem diferentes enfoques quando a desejabilidade e ao ritmo destas mudanças. Conservadores desconfiam das transformações no status quo social, mas liberais, radicais e anarquistas são menos desconfiados em relação à mudança em geral, sendo estes menos ou mais otimistas em relação a mudanças sociais rápidas. Conservadores veem as mudanças como análogas às gradualizações botânicas, sendo que os liberais do séc. XIX observam-nas como ajustes ou sintonias finas de um mecanismo. Nestas duas ideologias (conservadorismo e liberalismo) considera-se que a estrutura da sociedade é sólida e que mudanças são inevitáveis, mas ela é mais eficaz quanto mais modificam partes da totalidade, ao invés de mudarem as relações estruturais. Radicais e anarquistas, por outro lado, consideram as transformações estruturais uma necessidade, os primeiros em vista de uma reconstrução da sociedade em novas bases e os segundos abolir a sociedade e substituí-la por uma comunidade, que tem sua coesão mantida por sentimento compartilhado de sua “humanidade” comum (p. 39);
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- Com relação a questão da velocidade das mudanças: conservadores defendem um ritmo “natural”, enquanto os liberais o ritmo “social” do debate parlamentar, do processo educacional ou das disputas eleitorais. Radicais e anarquistas prefiguram transformações cataclísmicas, embora os radicais sejam mais conscientes do poder necessário para levar a cabo tais transformações, observando melhor a força inercial das instituições herdadas e preocupando-se com os meios para realizar as mudanças (p. 39);
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- Existem, assim, diferentes orientações temporais segundo cada ideologia adotada. Mannheim afirma que os conservadores consideram a história como um aperfeiçoamento progressivo da estrutura social vigente, sendo esta a melhor forma de sociedade que os homens realisticamente podem contar ou legitimamente se inspirar. Liberais consideram que um tempo no futuro em que a estrutura teria sido melhorada, mas o projetam em futuro remoto, desencorajando modos radicais de sua materialização no presente. Radicais consideram o utópico como iminente, fazendo com que desejem meios revolucionários de realizá-lo. Anarquistas idealizam um passado remoto de inocência humana prejudicado pela passagem ao estado social, projetando a utopia em plano não-temporal, como uma possibilidade de realização humana a qualquer tempo, bastando que se exerça controle sobre humanidade essencial, seja pela vontade ou pela consciência (p.39-40);
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- Mannheim classifica também as diferentes ideologias segundo a demarcação temporal que fazem do ideal utópico, classificando-as em termos de congruência social e transcendência social. Assim, o conservadorismo é mais socialmente congruente, enquanto o liberalismo o é em termos relativos. O anarquismo é mais socialmente transcendente e o radicalismo o é relativamente. Na verdade, cada uma delas apresenta elementos de congruência e de transcendência, o que faz com que a questão seja mais de ênfase. As ideologias convergem em sua preocupação com a mudança e é justamente isso que os leva a justificativa histórica de seus programas (p.40);
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- A diferença entre as ideologias se coloca no valor que atribuem à instituição social existente, levando as concepções quanto a forma de evolução da história e a forma que deve assumir o conhecimento histórico. Ainda segundo Mannheim as diferentes ideologias interpretam o progresso de modos diferentes. Sendo assim, o que é progresso para uma será decadência para a outra, além do que apresentam diferentes formas de explicação para o que tem acontecido na história, o que reflete as orientações “científicas” de cada ideologia (p.40);
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- Radicas partilham com os liberais a ideia de estuda da história de modo racional e científico, apesar de apresentar diferentes concepções do que seria esta racionalidade e esta cientificidade. Enquanto os primeiros buscam leis das estruturas e dos processos históricos, estes buscam tendências gerais ou os rumos gerais do desenvolvimento. Já os conservadores e os anarquistas, acompanhando a tendência geral do século XIX consideram que é possível encontrar um sentido para a história em esquemas cognitivamente responsáveis e, portanto, não-autoritários. O anarquista tende para as técnicas empáticas do romantismo nos seus relatos históricos e o conservador tende a integrar as intuições dos objetos históricos em relato organicista do processo (p.40);
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- White considera que não existe critério extra-ideológico para julgar e as concepções conflitantes do processo e do conhecimento histórico. Uma vez que tais concepções baseiam-se em considerações éticas, assumir uma postura epistemológica para julgar a adequação cognitiva não seria mais que assumir também outra postura ética. Não é possível assegurar que uma concepção seja mais “realística” que a outra, pois divergem justamente quanto ao critério de “realismo”. Também não se pode afirmar qual dos conhecimentos históricos produzidos é mais “científica” que o outro sem certa concepção do que é uma ciência histórica ou social (p.40 - 1);
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- White afirma que no século XIX a concepção mais aclamada de ciência era o mecanicismo, mas havia divergência entre os teóricos sociais quanto à legitimidade de uma ciência mecanicista da sociedade e da história. Assim, os modos formista, organicista e contextualista continuaram a florescer nas ciências humanas do século XIX devido a estas divergências de opinião quanto à adequação do mecanicismo (p. 41);
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- A questão não é a de classificar as diferentes concepções de história do século XIX em função de determinado “realismo” ou “cientificidade”, mas antes de mostrar como considerações ideológicas permeiam as explicações dos campos históricos abordados pelos historiadores, bem como construir modelo verbal dos processos desse campo numa narrativa (p. 41);
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- White afirma que a opção ética da obra histórica se reflete no modo de implicação ideológica resultado da relação entre percepção estética (elaboração do enredo) e operação cognitiva (o argumento), levando a enunciados prescritivos que vão além da descrição ou da análise. Assim, as implicações morais de um argumento histórico tem que ser inferidas do relacionamento que o historiador presume ter existido no próprio conjunto de eventos considerado, entre estrutura do enredo da narrativa e forma do argumento para a explicação “científica” (ou “realística”) explícita no conjunto de eventos (p. 41);
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- Exemplo: eventos postos em enredo trágico podem ser explicados “cientificamente” recorrendo a leis precisas de determinação causal ou leis putativas da liberdade humana. No primeiro caso a consideração é de que o homem está atado a destino inelutável por sua participação na história, enquanto no segundo caso os homens poderia agir de modo a controlar ou pelo menos influenciar seus destinos. Ideologicamente, poderíamos afirmar que no primeiro caso temos um impulso conservador e no segundo impulso radical. Tais considerações não precisam ser explicitamente tematizadas na narração histórica, mas são compreendidas a partir do tom ou clima em que são moldadas a resolução do drama e a epifania da lei que se manifesta. White considera que este modo mecanicista de explicação da história é utilizado por Spengler e por Marx, já que ambos justificam o enredo trágico, sendo que no primeiro a tendência social é de acomodação e no segundo é heroísmo e militância. Afirma ainda que esta seria o mesmo tipo de diferença encontrada entre as tragédias euripidiana e sofocliana ou entre o Rei Lear e Hamlet de Shakespeare (p. 41-2);
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- Para fins de ilustração, cita alguns historiadores:
- Ranke, seria “vazado”, segundo um enredo cômico. Isto por que o seu tema central é a reconciliação. O modo de explicação por ele utilizada foi o organicista, pois busca as estruturas e processos integrativos, sendo estes os modos fundamentais de relação encontrados na história. Segundo White, a preocupação de Ranke não estava na descoberta de leis, mas sim das ideias dos agentes e agências históricas. A combinação entre enredo cômico e modo organicista levam a implicações ideológicas conservadoras. As formas apresentadas por Ranke apresentam, assim, o desfecho harmonioso da comédia, mas o leitor contempla esta harmonia no campo histórico como estrutura concluída de ideias (instituições e valores), fazendo concluir que se habita o melhor dos mundos históricos possíveis, ou pelo menos o que se pode “realisticamente” achar que exista, dado o relato histórico feito por Ranke (p. 42);
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- Burckhardt era contextualista, explicando os eventos na rica trama das individualidades discrimináveis. Negava tanto a possibilidade de se inferir leis quanto a submissão à análise tipológica, sendo sua obra Civilização do Renascimento considerada sem “estória” e vazada no modo narrativo da sátira, pois este é o tipo ficcional da ironia e que recusa oferecer os tipos de coerências formais da estória romanesca, da tragédia e da comédia. Aliás, o modo narrativo da sátira se aproxima de uma perspectiva cética de conhecimento, apresentando como proposta anti-ideológica, oposta, portanto, às concepções de filosofia da história, tais como as de Marx e Hegel, ou Ranke, este último desprezado pessoalmente por Burckhardt (p. 42-3);
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- A narrativa satírica, no entanto, possui ela própria as suas implicações ideológicas, que podem ser consideradas liberais se o tom for otimista e conservadores se o tom for resignado. A questão levantada por Burckhardt de campo histórico como textura das entidades individuais reunidas está associado ao seu ceticismo formal, desencorajando o uso da história para a compreensão do mundo atual senão em termos conservadores (p. 43).