quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Ensaio sobre "O estrangeiro" ou é possível ao homem acostumar-se com tudo?



oo.OoO.oo
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No domingo passado, dia 10 de outubro de 2010, aproveitando o feriado prolongado em São Paulo, tive a oportunidade de assistir à peça "O estrangeiro", baseada na obra de Albert Camus, com belíssima atuação de Guilherme Leme e direção de Marisa Holtz. Quem estiver em na terra da garoa, vale conferir: http://www.livrariacultura.com.br/teatro/o_estrangeiro.asp
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Bem, mas meu propósito na postagem não é apenas o de fazer propaganda, na verdade ao assistir a peça pude lembrar da experiência que tive ao ler esta obra. O personagem central, Meursault, inicia a narrativa de alguns fatos recentes de sua vida, vestindo-se para o público (na peça, o ator veste terno completo, como se aprontando para ir ao trabalho) e ao mesmo tempo despindo-se, ao relatar o que se passa em sua alma.
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A trama pode até ser considerada simples. Um homem recebe mensagem de um asilo de que sua mãe está morta, chamando-o para o funeral. Ao chegar lá, nega-se a ver o corpo, dorme durante as horas em que o corpo é velado e não derrama lágrimas por sua genitora. Tudo se passa com bastante tranquilidade em que pese o personagem não parecer especialmente indiferente ao ocorrido, pois se desloca até o asilo, bem como procura justificar porque mantinha sua mãe naquele local.
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A justificativa que Meursault atribui é a ausência de dinheiro, sendo a permanência de sua mãe no asilo aquilo que de melhor ele poderia lhe oferecer. De qualquer modo, agora que já prestou a última homenagem a sua mãe, Meursault retorna para sua casa e para a sua vida normal. No dia seguinte ao funeral, encontra Marie na praia. Uma jovem que lhe parece especialmente atraente, com quem inicia relacionamento.
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A história toma ares mais densos quando Meursault trava relação com seu visinho Raymond, pessoa de caráter duvidoso que afirma para todos que é comerciante, quando na verdade se trata de um cafetão. Este, enciumado pela ideia de ter sido traído pela amante, a espanca. Depois do que pede para que Meursault escreva-lhe uma carta e que testemunhe que de fato a moça o havia traído. O envolvimento de Meursault com o caso, tomando partido de Raymond, causa boa impressão neste que o convida para fim de semana em uma cabana na praia. Convite a que Meursault aceita após confirmar que Marie poderia acompanhá-lo.
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É neste fim de semana que a vida de Meursault acaba por se modificar radicalmente. Diante do árabe que pertencia ao mesmo grupo que a garota espancada por Raymond e que estava ali para um acerto de contas, Meursault atira mais de uma vez nele, assassinando-o. Meursault é preso e processado pelo crime que cometera, sem, no entanto, demonstrar arrependimento em relação ao feito. Atribui o acontecido ao Sol, pois no dia em que matou, aquele estava excessivamente quente e o brilho dos raios o incomodavam.
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Durante o processo, que é noticiado pela mídia, Meursault começa a ser questionado por vários aspectos de sua vida: sobre sua reação (ou falta de) à morte da própria mãe, sobre sua relação com Marie (iniciada no dia seguinte de seu retorno do funeral), sobre sua relação com Raymond e com o caso da amante que fora espancada. Ao que parece, as pessoas a sua volta o julgam insensível, pessoa com a alma vazia, incapaz de chorar pela morte da mãe e capaz de matar outro ser humano sem demostrar sinal de arrependimento.
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Meursault parece assistir o seu próprio julgamento com indiferença. Como indiferente era para ele o seu relacionamento com Marie, exceto talvez quando a desejava e saciava seu desejo. Procurava mostrar a todos a sua volta o quão normal era: achava que amava a mãe, como todo mundo; mantinha um relacionamento, um emprego, vivia a sua vida, enfim. Mas, eis que o acaso, um acontecimento fortuito (como o raio de Sol refletido na faca impunhada pelo árabe e que atinge os seus olhos) o torna assassino. Seria o acaso ou a indiferença o verdadeiro motivo da mudança operada na vida de Meursault?
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De fato, mesmo antes do julgamento Meursault já apresentava sinais de indiferença em relação ao mundo à sua volta e mesmo em relação às pessoas com que travava conhecimento. Mas, o que o faz manter emprego e um relacionamento? Para alguém que seja indiferente não pareceria razoável esperar tamanho esforço e compromisso. Parece, então, que o primeiro Meursault, aquele de antes do assassinato, ainda aspira algo em relação à vida, nem que seja certa dose de normalidade e de aceitação social.
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Depois do primeiro Meursault, podemos notar dois momentos de ruptura que levarão ao segundo Meursault: o da ruptura social e o da ruptura interna. Quanto marco de ruptura social, não o localizo exatamente no assassinato, que tem a sua importância para o enredo, mas nem tanto para a pensonagem. Quero dizer que por mais que tirar a vida de outro ser humano seja algo suficientemente grave, Meursault parece encarar com estranha normalidade, como uma ação entre outras, como vestir ou despir a roupa, como andar na praia, casualmente portar uma arma e atirar em alguém. Parece-me que a verdadeira ruptura social ocorre no julgamento pelo qual passa, onde todos passam a vê-lo como assassino e não mais como membro da sociedade.
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Observando, então, o próprio julgamento, Meursault se questiona por que o juiz, os advogados de defesa e de acusação, o juri e demais presentes não perguntam sua opinião sobre o caso, já que lhe parece seria ele a pessoa mais indicada para explicá-lo. A questão é que o processo já possui seus ritos e sendo Meursault, ou o assassino do próprio pai que seria julgado na sessão seguinte do tribunal, ambos seriam tratados da mesma forma. A igualdade entre os dois criminosos os tornam diferentes em relação à sociedade, o que leva Meursault à percepção da diferença que mantinha em relação aos demais.
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Ele passa a se perceber como presidiário e, em suas próprias palavras, é fácil acostumar-se com aquela vida. Pouco há para fazer no contexto de limitação da liberdade e, aquele que agora sonha com a praia e com Marie, será levado pelo mesmo ritmo do hábito, da passagem das horas e do tempo, a se perceber como criminoso. É após sua condenação à execução pública que ocorre o segundo momento da ruptura, àquela que denominei de interna. Esta ocorre quando finalmente Meursault permite que o padre venha vê-lo após várias negativas. Ao ouvir sobre o arrependimento e perdão, o condenado já não está disposto a esconder suas verdaderias inquietações. Acaba de ser condenado por homens que antes o tratavam como igual e duvida que o além possa lhe causar maior conforto.
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Agora sim, tudo é indiferente. De que vale a mãe de Meursault ter sido feliz nos anos em que esteve no asilo e por isso seu filho não ter encontrado motivos para chorar em seu funeral? De que vale ter sido um cidadão exemplar, mantendo emprego e buscando até certo ponto a estima de seus semelhantes? De que vale ter sido sencero, afirmando os motivos que verdadeiramente considerava terem sido os que motivaram o crime que cometera? De que vale, enfim, ter sido perfeitamente adequado durante toda a sua vida se, na verdade, sempre fora diferente. Apresentando uma perspectiva de vida que contrariava as expectativas gerais ao considerar indiferente aquilo a que ele próprio se dedicava em sua vida.
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Não me parece que seja exatamente isso. Acho mesmo que Meursault (o primeiro) ainda encontrava meios e motivos para agir, procurando ser igual a seus semelhantes. No entanto, é na sucessão das rupturas social e interna que ele se torna o segundo Meursault. Não que ele próprio tenha alterado o modo como via a vida. O que aparentemente acontece é que a sociedade não encontra mais lugar para ele na normalidade, uma vez que ele cometeu ato socialmente avaliado como negativo. O segundo Meursault assume para si, então, o papel até certo ponto de um mártir social, ou seja, aquele que está disposto a adequar-se mesmo nas piores circunstâncias. Deixa-se julgar e aceita o julgamento. E, o que ele consegue com isso? Aparentemente a saída do mundo.
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A peça ou a obra "O estrangeiro", para aqueles que tiverem o ânimo de ler, levanta questões que podem beirar reflexões profundas sobre as aspirações humanas. Alguns pares de questões podem ser levantadas, tais como: a relação entre adequação e inadequação social; a relação entre auto-percepção e percepção social; a relação entre hábito e auto-percepção; a relação entre liberdade individual e restrição social. Podemos ver a obra de diversas perspectivas, o que seria equivalente a analisar a alma humana também sobre diferentes olhares, fazendo do texto espelho (mesmo que apenas como exercício hipotético-experimental) da alma.

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