Recentemente revi o filme "Amadeus", que trata da vida e obra de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791). Não preciso ressaltar a genialidade deste compositor, já que isto é suficientemente reconhecido. Gostaria de tecer alguns comentários sobre o filme, pois ele mostra um elemento que me parece objeto interessante de reflexão: o papel desempenhado por Antonio Salieri (1750-1825), o narrador da vida de Mozard no filme e, aparentemente, o seu antagonista e o responsável por sua morte.
A narrativa começa com a vida de Salieri, com a sua paixão pela música, que se vê impedida de ser realizada pela ausência de permissão de seu pai. No entanto, com a morte do mesmo, iniciou os estudos musicais especialmente após sua mudança para Viena e tornando-se, finalmente, o compositor oficial da corte. Em realidade sua vida se mostra oposta à de Mozart, cujo pai, Leopold Mozart, o estimulou ao estudo da música desde tenra idade.
Outra questão parece colocá-los em oposição: enquanto Salieri era devoto, atribuindo sua inspiração musical à Deus, Mozart, por outro lado, é mostrado no filme com vida desregrada, especialmente durante à noite, após dedicar seu dia à composição na casa onde morava com sua esposa Constanza. Com ela teve um filho, por outro lado, Salieri é representado como reprimindo suas paixões, como forma de alcançar a graça de ser representante da voz de Deus.
No entanto, o encontro entre os dois desperta em Salieri a inveja, pois é capaz de perceber, com o seu treinamento musical, a genialidade nas composições de Mozart. É neste momento que começa o conflito: inicialmente um conflito interno, em que Salieri se vê obrigado a reconhecer suas próprias imperfeições musicais e morais, pois deseja atrapalhar a ascenção do jovem Mozart; até alcançar o conflito externo, momento em que Salieri efetivamente começa a secretamente elaborar planos para prejudicar Mozart, cujo ápice é, após a morte do pai de Mozart, assobrar a vida deste compositor ao encomendar uma missa para as almas: o Requiem.
Considero que Salieri e Mozart compartilhavam obviamente a mesma paixão pela música. Talvez o primeiro com a rigidez do adulto e a melancolia da maturidade, enquanto o segundo com a ingenuidade da criança e a força da juventude. Além disso, para ambos a influência do pai foi decisiva: para Salieri a ausência de apoio paterno era objeto de ressentimento, que depois se transforma em ressentimento em relação à Deus, pois acredita que mesmo com toda a sua abnegação, Deus havia ironicamente entregue o dom musical à Mozart e não à ele.
Eis que, em cena final do filme, Mozart sente-se mal durante a apresentação da Flauta mágica e Saliere, que estava presente, o leva para casa. No momento em que chegam, Mozart está esgotado, mas Salieri inventa a história de que o homem que encomendara a missa para as almas, que não era outro senão ele próprio, quer que a mesma fique pronta até a noite do dia seguinte, propondo à Mozart que o mesmo dite as notas que seriam, então, por ele registradas em partituras.
Os dois, portanto, realizam esta atividade conjunta, a noite termina, dando lugar à luz do dia. Neste exato momento, Constanza, a esposa de Mozart, retorna para casa com seu filho e percebe a presença de Salieri. Tenta expulsá-lo, mas Salieri se mostra fiel ao amigo, que havia pedido que Salieri permanecesse perto dele, enquanto o mesmo descansava. Desenvolve-se uma discussão entre Constanza e Salieri, e eis que, para a surpresa de ambos, Mozart dá seus suspiros finais e morre, sem terminar seu Lacrimosa.
Esta cena final é profundamente tocante, pois apresenta o momento de reconciliação entre Salieri e Mozart. Interessante notar que Mozart considerava Salieri um amigo, pois nem sequer percebia suas maquinações e, inclusive, pede desculpas ao mesmo por ter pensado de Salieri não se interessava por seu trabalho. Salieri, por outro lado, mostra-se preocupado e profundamento solícito à Mozart naquela noite, talvez apenas para levar à cabo seu plano de tomar o Requiem como de sua própria autoria ou talvez porque admirasse profundamente seu antagonista.
Minha interpretação é de que o antagonismo entre Salieri e Mozart trouxe benefícios à ambos: Salieri pode experimentar emoções diferentes ao permitir transbordar em seu peito a inveja e o ódio por Mozart. Tais paixões, usualmente consideradas negativas, podem ter influenciado suas composições daquele momento em diante, de tal modo que a presença de Mozart representasse para Salieri um desafio para tornar-se melhor, enquanto ser humano, uma vez que teria que lutar contra suas próprias paixões, mas também musicalmente, já que teria que responder ao seu desafiante com composições à altura das de Mozart.
À seu turno, Mozart talvez também considerasse Salieri como seu antagonista: Salieri era o compositor oficial da corte, um homem admirado por todos, enquanto Mozart lutava para ser aceito em Viena. Mas, é quando Salieri inicia a execução de seu plano final, que lança o desafio mais complexo ao compositor Mozart, pois com o Requiem Mozart vê esgotar as suas forças em uma obra que pouco a pouco o consumia. E que, finalmente, o consome. A luz da Flauta mágica aparece absorvida pelas trevas do Requiem, que, em outras palavras, pode ser interpretado como a infância de Mozart dando espaço à maturidade, em que ele tinha que assumir posição sobre o fantasma do passado representado pela influência e também perda de seu pai.
Por estes motivos, consideramos que Salieri ensina a Mozart a maturidade e a reflexão sobre assuntos humanos, em que pese a dor que tais reflexões podem causar, enquanto Mozart relembra Salieri o que é a ingenuidade e a juventude, em sua entrega apaixonada e sem limites à música e à vida. Neste sentido, eles poderiam ser colocados como representantes nietzscheanos dos modelos apolíneo e dionisíaco: o primeiro interessado pela regra musical e limitação à moral da época e o segundo pelo desregramento musical e transgressão da moralidade vigente. Porém, tal como Nietzsche apresenta estes dois modelos, a verdadeira arte surgiria da união e não do uso particular de um deles. Acho que o filme "Amadeus", naquilo que apresenta da relação entre Salieri e Mozart, mostra que do conflito gerado entre opostos, não são apenas pontos negativos que são gerados, pois me parece um ser humano completo precisa da pureza da infância, do arrebatamento da juventude e do compromisso da maturidade.
Segue o link para vídeo do Youtube, que apresenta parte da cena final que se desenvolve entre Salieri e Mozart: http://www.youtube.com/watch?v=nJ226kQJiHY&feature=related
7 comentários:
Ótima postagem. Ainda estou devendo um comentário sobre o assunto, mas desde já adianto que tenho uma interpetação um tanto diferente sobre o filme e sobre a referida oposição. Beijos! Ah, feliz Natal e feliz Ano Novo!
Legal, André. Fico aguardando, então. Tudo de bom para você também, neste Natal e no ano vindouro.
A tese da oposição me parece que faria mais sentido na medida em que Salieri tivesse alguma coisa que fizesse realmente falta a Mozart. Mas Mozart era Mozart, com ou sem Salieri, ele era um gênio, com suas extravagâncias e suas idiossincrasias, mas era um gênio, incomparável, incontestável. Sendo assim, tendo a ver Amadeus como um filme sobre a frustração de não ser um gênio, sobre a frustração de que, para quem aspira a excelência e tem que conviver com um gênio a que não é capaz de se igualar, a única alegria possível são as migalhas de amizade que se pode ter dele e de ajuda que se pode dar a ele. O gênio não é recompensa do esforço, e sim dote do acaso, e o senso humano de igualdade e de justiça não pode fazer as pazes com isso. Isso me parece ser, em última instância, aquilo com que Salieri lutou ao longo de todo o filme e aquilo que ele só pôde aceitar quando teve uma profunda experiência de impotência perante o gênio.
Bom, na interpretação proposta, afirmei que o que faltava para Mozart era a maturidade de Salieri, que até certo ponto se mede pela adequação e referência social que ele conseguiu alcançar. Também li um artigo, já que não entendo de música, que afirmava que o modo como se retrata Salieri no filme é pejorativa, pois ele teria influenciado outros músicos da sua época. Mas, sem dúvida, não tenho como avaliar essa afirmação. Agora, com relação ao Mozart, não tenho base para afirmar que ele é um gênio, a não ser uma certa opinião que julgo compartilhada de que ele é um dos grandes músicos e compositores clássicos. Considero que a habilidade musical de Mozart vem do fato de ele ter sido educado desde cedo por seu pai, o que fez com que em sua idade adulta ele estivesse musicalmente mais bem preparado que os demais. Tenho receio de aceitar a intepretação de que o gênio é um dote do acaso, já que é impossível avaliar se Mozart submetido às condições de vida de Salieri e Salieri às de Mozart, não teria chegado ao resultado exatamento oposto. A interpretação que você propõe tem como fundamento a ideia de que Mozart é um gênio incontestável fruto do acaso e, neste sentido, não consigo compartilhá-la.
Não tenho uma teoria pessoal sobre o gênio artístico e suas causas, por isso a opinião de que ele surge do acaso não é bem a minha, mas sim a que vejo retratada no filme. "Amadeus" não enfatiza o esforço e o aprendizado de Mozart, e sim a naturalidade com que cria suas grandes obras de gênio. Mas não posso deixar de observar que, se a diferença entre Mozart e Salieri viesse dos anos a mais de treinamento musical na infância, ela seria meramente quantitativa, o que não parece ser o caso.
Oi Pessoal,
Ontem vi eu também revi o filme "Amadeus" com meu pai e meu marido e nós 3 ficamos com uma grande pergunta na cabeça: Salieri foi mesmo esta personalidade cruel?
Acho extremamente desleal e desonesto um filme retratar uma personalidade importante de uma forma tão distorcida. Fica para nós esta pergunta. Se alguém encontrar dados históricos veridicos, eu agradeço se me passarem a fonte. Uma abraço
ps: Débora, parabéns pelo blog! É muito bom!
Graziela http://pontoconsciente.blogspot.com
Olá, Graziela. Obrigada por ler e por postar comentários no blog. E desculpe a minha demorado em dar uma resposta.
Bom, relativamente a sua pergunta eu considero que na postagem procurei mostrar um pouco a visão que o roteirista e os produtores do filme tiveram. É claro que eles podem ser acusados de maniqueístas, por transformar Salieri em alguém que persegue Mozart e Mozart como alguém que só queria desenvolver sua arte.
Mas, acho que mesmo no filme esta caracterização é ambígua, pois mesmo que consideremos a perspectiva geral de que Salieri seria a personagem má, ele no entanto é representado com extrema sensibilidade. Basta observarmos que ele é o narrador do filme e, além disso, o filme começa com o Salieri em uma espécie de sanatório. Então, passo a considerar o seguinte: quem é efetivamente a personagem principal do filme, Salieri ou Mozart?
Parece-me que ambos, Salieri e Mozart, foram representados como exemplos da tragédia humana, ou seja, que de algum modo, quer sejamos um Salieri (alguém com representatividade social) ou um Mozart (alguém inicialmente sem representatividade social) estamos todos submetidos a uma ordem social e histórica que independem de nossa decisão. E, mesmo naquilo que depende de nossa decisão, nem sempre conseguimos transformar nossa vida no sentido de que ela se torne mais favorável.
Veja que Salieri, de acordo com o filme, empreendeu grandes esforços para interromper a ascenção meteórica de Mozart, mas não conseguiu impedi-la. Por outro lado, Mozart trabalhou literalmente até a morte, mas foi enterrado em vala comum, pois sua esposa não tinha condições de lhe oferecer um funeral digno.
A partir desta perspectiva, observo que a relação entre personagem principal e secundária, entre personagem boa ou má, se mostra com menos nitidez, pois, em certo sentido, o filme pode ser interpretado como representativo do drama geral humano, no sentido de que nem sempre conseguimos superar nossas dificuldades. Por isso considero o filme e a construção das personagens sensível, pois leva em conta problemas mais gerais a que os homens estão submetidos.
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