terça-feira, 12 de agosto de 2008

Humano, demasiado humano I: ou quem são os espíritos livres


Em prefácio de 1886, Nietzsche afirma que suas obras O nascimento da tragédia e Para além do bem e do mal foram considaradas por alguns como laços e redes para pássaros incautos. Admite que a suspeita profunda tem conseqüências como as angústias do isolamento e que em sua própria busca de auto-restabelecimento, acreditou que não era o único a se dedicar a suspeita e a arte. Deste modo, os "espíritos livres" são até certo ponto criações de sua arte, e a eles dirige a obra Humano, demasiado humano. Apesar de os mesmos ainda não existirem, fazem companhia a Nietzsche, que, ao mesmo tempo, escreve sua obra por antecipação, pois os vê surgir gradualmente na Europa.


Nietzsche descreve o espírito livre como um antigo prisioneiro, cada qual em seu canto e pilar, sendo reconhecidos por sua gratidão a tudo que parece merecer ser venerado. Seu livramento, no entanto, é súbito como um tremor de terra e a saúde que pode adivir do isolamento doentil provocado pela primeira e problemática vitória não prescinde da doença: a saúde será caracterizada exatamente pelo autodomínio e pela disciplina do coração, que permite os caminhos para muitos e opostos modos de pensar. Inicialmente, impulso e ímpeto reinam e se tornam senhores:


"Um súbito pavor e premonição contra aquilo que ele amava, um relâmpago de desprezo contra aquilo que para ele se chamava "dever", um desejo tumultuoso, arbitrário, vulcânico, de andança, estrangeiro, estranhamento, resfriamento, sobriedade, enregelamento, um ódio ao amor, talvez um gesto e um olhar iconoclastas para trás, para ali onde ele até então rezara e amara, talvez uma brasa de vergonha daquilo que acaba de fazer e, ao mesmo tempo, um regozijo por tê-lo feito, um arrepio bêbado, interno, jubilante, em que se denuncia uma vitória - uma vitória? sobre o quê? sobre quem? uma enigmática, interrogativa, problemática vitória, mas sempre a primeira vitória: - eis o que há de ruim e de doloroso na história do grande livramento".


Mesmo não assumindo uma concordância direta com todas as teses de Nietzsche, parece-me interessante relacionar a descrição que faz do "espírito livre" com o que se constuma denominar espírito crítico. A crítica, sempre se apoia em algo que lhe é anterior, seja um livro, um pensamento ou uma ação, e no momento mesmo em que nos arriscamos a fazê-la ela se mostra como uma vitória, pois reafirma nossa autonomia de pensamento.


English version


In preface of 1886, Nietzsche it says his works The birth of the tragedy and Beyond good and evil had been considered by some as bows and nets for innocent birds. He admits that the deep suspicion has consequences as anguish of isolation and that in its proper search of auto-reestablishment, he believed that it was not the only one that dedicates himself to suspicion and art. In this way, "free spirits" are kinds of creations of his art, and he dedicates to them his Human, too much human. Although the same ones do not yet exist, they make company to Nietzsche, and he, at the same time, writes its workmanship for anticipation, therefore he sees them appearing gradually in Europe.


Nietzsche describes the free spirit as one old prisoner, each one in its sings and pillar, being recognized for its gratitude to what seems to deserve to be venerated. Their release, however, is sudden as a land tremor and the health that can become from this sick isolation provoked by the first and problematic victory does not exist without the illness: the health will be characterized accurately by self domain and for the discipline of the heart, that allows to access for many and opposing ways of thinking. Initially, impulse and impetus reign and become the owner:


"Perhaps a sudden terror and premonition against what he loved, a lightning of disdain against what for it if he called "duty", a tumultuous, arbitrary, volcanic desire, of walking, foreigner, strangeness, cooling, sobriety, cooling, a hatred to the love, iconoclasm gesture and look backwards, for there where they until now pray and love, perhaps a live coal of shame of what he finishes to do and, at the same time, a rejoicing for having done, a drunk chill, internal, joyfull, that denounces a victory - a victory? on what? on who? An enigmatic, an interrogative one, problematic victory, but always the first victory: - here is what it has of bad and painful in the history of the great release."


Although I not to assume a complete agreement with all the teses of Nietzsche, it seems interesting to relate the description that he makes of the "free spirit" with what we are used to call critical spirit. The critical one, always bases itself on what is previous, either a book, a thought or an action, and at the same moment where we take the chance to make them, it reveals a victory, therefore it reaffirms our autonomy of thought.

4 comentários:

Anônimo disse...

Relacionar o espírito livre nietzscheano com o espírito crítico me parece uma interpretação excessivamente bondosa das idéias do filósofo alemão. Afinal, a noção de espírito crítico pressupõe uma atitude de razoável suspeita contra as certezas estabelecidas, mas apenas porque se crê, no fim das contas, que tais certezas podem não ser verdadeiras e que, se de fato não o forem, devem ser denunciadas como falsas e substituídas por crenças melhores, ou seja, mais verdadeiras. Mas o espírito livre, na medida em que se livrou inclusive do peso da verdade e de todos os deveres (inclusive do dever de ser fiel à verdade), já não pode ter um espírito crítico naquele mesmo sentido, porque a suspeita que ele alimenta contra toda crença, certa ou incerta, estabelecida ou não, parte de uma negação de princípio de que alguma crença possa ser certa e estabelecida, uma negação de princípio de que exista alguma verdade a que o intelecto deva se curvar ou de que exista algum valor em procurar por ela. Por tudo isso, o espírito livre, na medida em que renunciou à verdade, renunciou à criticidade, porque suas refutações já não são manifestações do cuidado de não tomar por verdadeiro o que é na verdade falso, mas um reafirmação constante de uma liberdade que no fundo é prisão, porque o niilista, na medida em que elimina as bases a partir das quais se poderia falar razoavelmente sobre as outras coisas, se autocondena a um discurso de eterna reafirmação do mesmo, de eterna repetição do niilismo. Daí que eu acredite que o espírito crítico, à maneira, por exemplo, do Sócrates interrogador, este, sim, é verdadeiramente livre, enquanto o espírito livre niilista, em vez de livre, é condenado à solidão da crença numa única verdade (a verdade do niilismo, que torna impossível todas as outras) e ao eterno e sufocante envenamento da própria alma com essa doutrina.

Linda Cavalcanti Lobato disse...

Gosto de uma passagem, creio que de Leibniz - corrijam-me os filósofos se me engano -, em que ele critica as regras do "Discours de la Méthode" cartesiano, não porque fossem erradas, mas por serem corretas de modo óbvio e vazio. Para o matemático lipsiano, aconselhar, por exemplo, que se divida um problema em tantas partes quantas forem possíveis e necessárias para a melhor visualização da questão ou, ainda, que se ordene as partes por ordem crescente de complexidade era tão inútil quanto prescrever, simplesmente, que se façam divisões adequadas e ordenações coerentes. Leibniz acusava o fundador da filosofia moderna de não haver dado o critério com que se poderia cumprir com as tarefas a que convidava os investigadores. Com que critério se aufere que uma divisão foi adequada? Com que critério se verifica se uma ordenação foi coerente? Por mais que considere essas queixas contra as regras de Descartes um tanto exageradas e injustas, não posso deixar de concordar com o cerne do argumento de Leibniz: O ponto crucial da questão não está tanto no que a regra pede que se faça, mas no critério com que se torna possível fazê-lo.

Isso é especialmente verdadeiro no que se refere ao chamado "espírito crítico". Vou ater-me aqui ao "espírito crítico", que me pareceu ter sido o sentido que a Débora quis emprestar à expressão nietzscheana dos "espíritos livres", abrindo mão de comentar sobre possíveis diferenças entre as duas expressões, até porque não poderia acrescentar muito ao comentário do André a esse respeito. Retenho da argumentação do André apenas um elemento que me será útil no que tenho a dizer: O que quer que ele seja, o "espírito crítico" não é um cético, nem um niilista. Ele acredita que há crenças verdadeiras, ou que há algumas mais verdadeiras que outras. Do contrário, sua crítica não faria sentido.

Ora, o espírito crítico não aceita todas as crenças que lhe são sugeridas, nem as rejeita todas. Em qualquer dos dois casos, não estaria sendo crítico, exatamente porque não estaria exercendo nenhum crivo, estaria, ao contrário, pondo todas as crenças na mesma situação, renunciando a separar as boas das más, as verdadeiras das falsas. Sendo assim, o espírito crítico aceita algumas crenças e rejeita outras. Para que essa conduta ora de aceitação, ora de rejeição seja crítica, em vez de simplesmente arbitrária, é preciso que o aceitar e o rejeitar sejam as conclusões de uma operação racional de avaliação, o que exige algum critério.

É exatamente aí que, na minha opinião, convém lembrar a crítica leibniziana às regras do método cartesiano. Pois freqüentemente se diz que ser crítico é aceitar apenas as crenças que sejam verdadeiras e comprovadas e rejeitar as que sejam falsas ou não comprovadas. Esse lugar-comum, aliás, não se afasta muito da primeira regra do "Discours", que convida a não aceitar jamais alguma coisa como verdadeira a menos que se tenha conhecimento de clara a suficiente evidência em seu favor.

Mas todo o problema surge de saber quando é que alguma coisa pode ser considerada verdadeira ou comprovada. Sua verdade e sua comprovação teriam que ser elas mesmas verdadeiras ou comprovadas? Onde isso pode parar? Bem, é claro que numa concepção fundacionalista como a de Descartes, em que se supõe que existam certas crenças primeiras e inegáveis, a partir das quais se pode extrair ou sobre as quais se pode basear outras tantas crenças, o espírito crítico seria exercido na medida em que o pensador recusasse a verdade de qualquer crença que não fosse uma verdade evidente ou não pudesse ser derivada de ou fundada em uma verdade evidente. Mas, uma vez que hoje em dia se considera que o fundacionalismo (com base em evidências seja da razão seja dos sentidos) é um projeto filosófico no mínimo problemático, para não dizer completamente inviável, em que bases o espírito crítico ainda poderia exercer o seu juízo de avaliação das crenças que lhe são sugeridas? Autoridade dos grandes, consenso da maioria, adequação empírica, razoabilidade para os padrões do senso comum, utilidade para objetivos técnicos ou humanos etc.? E como resolver a situação de que cada pensador que se propuser ser "crítico" segundo um desses critérios será, contudo, "acrítico" aos olhos dos que adotam outro critério entre aqueles? Há um futuro para o espírito crítico na era das incertezas e do pluralismo?

Débora Aymoré disse...

Devo dizer que a bondade na interpretação do espírito livre em Nietzsche não é exatamente minha, mas do autor Carlos A. R. de Moura (Nietzsche: civilização e cultura. São Paulo: Martins Fontes, 2005). O capítulo III da citada obra critica a intepretação de Jaspers e de Heidegger, que consideram a "vontade de potência" nietzscheana, respectivamente:(1) dogmática, na medida em que é uma qualidade de um ser aplicada a totalidade dos seres, e (2) herdeira da mesma metafísica que pretendia afastar, pois é busca do princípio que determina a essência e o fundamento dos seres em sua totalidade.
Ao negar estas duas interpretações da "vontade de potência" de Nietzsche, Moura afirma que o espírito livre é aquele que leva a sério a máxima "não há fatos eternos e nem verdades absolutas", tornando-se um experimentador. Deste modo, ele exprime a "vontade de potência" por jamais se fixar em certeza alguma, superando-se em direção a novas opiniões e perspectivas.
O espírito livre seria, portanto, um "viajante sem porto de chegada" e que reconhece o conhecimento como perspectivo, parcial e provisório, destinado a superar-se em direção a outra interpretação.
Concordo com a Linda quando ela afirma que o "espírito crítico" a que me referi, não é nem cético, nem niilista, pois me pareceu que a interpretação de Moura, ao falar de perspectivismo, indica que o espírito livre leva em conta alguma noção de verdade, mesmo que fadada a superação.
O problema, bem levantado pela Linda, é mesmo o da ausência de critérios comuns para auferir esta verdade. Não cair no ceticismo ou no niilismo, implica uma queda no relativismo?
Bem, se interpretarmos o perspectivismo como relativismo, estaremos sempre fadados a discutir sem a esperança de alcançar uma verdade provisória, mas acho que isso não ocorre de fato. Parece-me que, dentro de algum limite, existe um certo conjunto de conhecimentos que consideramos verdadeiros, como vemos em revistas, em grupos de pesquisa universitários, em associações científicas ou filosóficas. Acho que nossa insatisfação com o perspectivismo, portanto, advém muito mais da angústia da perda das certezas que víamos na filosofia de tradição platônica.
Daí que eu considere, finalmente, que o conhecimento hoje seria muito mais um fazer ou um superar-se, que não tem uma meta determinada. Dito de outra maneira, todos a que se dedicam ao conhecimento acabam sendo espíritos livres, se e na medida em que procuram a superação das verdades provisórias.

Anônimo disse...

Se 1. se renuncia à noção forte de vontade de potência, 2. se volta a assumir um compromisso com a verdade, 3. se encara o espírito livre como espírito crítico e 4. se herda apenas uma prevenção contra a idéia de verdades imutáveis e absolutas, então em que sentido ainda estamos falando de Nietszche? Falar de Dewey, de Popper, de Rorty, não daria no mesmo?