Conforme anunciado na Parte 1 desta postagem, aqui me dedicarei a alguns comentários especialmente direcionados a questão dos dispositivos que reagem a corruptibilidade do tempo. Começarei indicando como conceituo e interpreto a relação entre o instinto, o hábito, a memória, o esquecimento e a consciência, direcionando-me ao que parece ser o ponto chave de minha análise, que é a questão da centralidade da consciência em relação aos outros dispositivos.
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Com relação aos conceitos e às relações entre os dispositivos, considero que o instinto seria o desencadeador da reação ao tempo. Uma vez que a passagem do tempo é experienciada e que, nesta experiência, coisas e pessoas passam a existir e deixam de existir, como no caso extremo do nascimento e da morte, o instinto seria a percepção de que também se está sujeito a esta corrupção, mas é preciso de algum modo reagir a ela. Assim, a percepção, apesar de honesta é desmotivadora, pois reconhecer-se vinculado necessariamente a corrupção promove o sem sentido das coisas. Afinal, no decurso do tempo somos obrigados a passar por situações extremas de dor e de sofrimento, que parecem fazer sentido apenas se conseguimos relacioná-las a algo exterior ao próprio sofrimento, que pode ser uma lembrança ou algo que se aprendeu com ele. Resumidamente, consideramos que o instinto é uma reação a percepção da sujeição do indivíduo a corruptibilidade, que age em prol de sua própria preservação. Vermos a seguir o que se quer preservar através das ações.
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Antes de informar o que no fundo se quer preservar, gostaria de ressaltar os três modos de reação a percepção da própria corruptibilidade ou do sem sentido do mundo. O primeiro modo de reação seria o hábito, que se concretiza por meio de ações repetidas que mascaram a falta de sentido, dotando de continuidade os eventos que simplemente ocorrem no tempo. Neste ponto incluiríamos a cultura, pois a formação recebida desde o nascimento e a própria repetição de seus elementos serve de indício de permanência ao indivíduo, que percebe-se, então, conectado à cadeia que vai além do seu próprio aparecimento no mundo. Ou seja, toda a tradição que recebe em sua formação, serve como indício da continuidade que a sua percepção não abarca, pois seu aparecimento no mundo e no tempo começa e termina de modo abrupto. Porém, os elementos tais como a cultura e as instituições parecem, em todo o caso, ter uma existência senão eterna, pelo menos com duração mais longa que a do indivíduo. Esta forma de reação que o hábito promove, pressupõe a relação do indivíduo com elementos do mundo, cuja estabilidade vai além do tempo de vida do próprio indivíduo.
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O segundo modo de reação é a memória, que pode ser observada tanto da perspectiva individual, como da coletiva (aliás, como todas as formas de reação a corruptibilidade do tempo, mas me parece mais importante ressaltar aqui esta dupla perspectiva). De um ponto de vista individual, seria a percepção das próprias experiências que ocorreram no presente e, portanto, foram experiência atual, mas agora pertencem a um passado. No entanto, do ponto de vista coletivo, pode se confundir com o hábito, pois repetir elementos da cultura ou das instituições, é uma forma de rememorá-las. Como afirmamos na primeira postagem o esquecimento é o outro da memória e, portanto, não podemos falar de um sem tratar do outro, sendo o esquecimento o terceiro modo de reação. De modo simplificado, a memória procura preservar, pela lembrança periódica, certos eventos que não pertencem mais ao tempo presente, enquanto o esquecimento é o esforço contrário, ou seja, de relegar ao passado algo de que não se quer lembrar. Nestas duas formas de reação, parece estar presente um elemento de escolha (ou discricionariedade) e, como as escolhas estão relacionadas a nossa compreensão do que consideramos positivo (e, portanto, digno de lembrança) e do que consideramos negativo (e, portanto, indigno de lembrança), é preciso tratar de como se forma a consciência, que preside este processo de seleção.
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Uma vez que se assuma que a consciência não é somente capaz (como é) de se mover através do passado, do presente e do futuro, mesmo que deste último não tenha conhecimento pleno e realizando apenas uma projeção, seria interessante notar que é neste dispositivo que também se encerra a capacidade de organização do sentido de continuidade em relação aos eventos. Isto porquê, como vimos, o instinto é a percepção mais crua e direta da corruptibilidade e do sem sentido sugerido pela mera sucessão dos eventos. O instinto é, assim, o motor (motivador) da reação que ocorre através do hábito, da memória e do esquecimento. Mas, estas formas de reação seriam completamente aleatórias, não fosse o fato de que a consciência, que aqui estou tomando como sinônima de psique em sentido amplo, é educada e, portanto, tendente a fazer certos tipos de avaliação e de escolhas, e não toda e qualquer avaliação e escolha. Assim, o relativismo epistêmico a que estarímos pressionados a assumir no caso da concentração na percepção instintiva que temos das experiências cotidianas, dá lugar a percepção de alguma continuidade e algum sentido, cuja sede está na consciência, por ser este o dispositivo capaz de se apartar do presente.
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Assim, em que pese a capacidade da consciência de se mover entre o passado, o presente e projetar-se para o futuro, ela não é independente da historicidade e não deve, portanto, ser tomada de modo absoluto, como a solução definitiva dos problemas suscitados pela percepção da corruptibilidade. Aliás, como anunciamos, considero que aquilo que o instinto parece querer preservar em última instância é a própria consciência, pois o lado mais trágico da capacidade humana de perceber sua própria sujeição ao tempo, é saber que o esforço de atribuição de sentido ao mundo pode simplesmente terminar, de modo abrupto, quando da corrupção a que está necessariamente obrigado. Observe-se, no entanto, que não estou afirmando que esta dissolução da consciência ocorrerá, pois isso seria projetar-me a um futuro sem base alguma. O que quero ressaltar é que a própria possibilidade de que essa corrupção fatal ocorra é o desencadeador da reação à ação corrosiva do tempo.
13 comentários:
Débora, bom ver que você postou a segunda parte de sua resenha, onde - como se espera de quem está no Doutorado - você expressa suas opiniões e percepções sobre as temáticas abordadas. Tecerei alguns comentários a partir de suas afirmações.
1. Dando sequência ao espírito da primeira postagem, aqui novamente o tempo é visto apenas como ameaça, como uma espécie de percurso constante rumo a um fim inevitável. Essa valoração exclusivamente negativa do tempo, própria da tradição metafísica platônica, já foi apontada no comentário do André Coelho à outra postagem. Mas ele recorreu a Heidegger, com sua obscura metafísica do Dasein, para opor-se a essa visão. Eu considero que nem precisamos ir tão longe. Algumas das percepções cotidianas vão de encontro a essa avaliação negativa do tempo. O pai deseja ver o filho crescer e se realizar enquanto pessoa. Apenas um pai acometido de uma patologia desejaria que o filho permanecesse em eterna infância. Um empreendedor quer que seu projeto se realize e um dia se conclua. Seria uma verdadeira angústia permanecer para sempre apenas no passo inicial de sua empresa. O aluno de línguas se sente aborrecido com as primeiras aulas e deseja que chegue logo o dia em que tenha aprendido aquelas noções básicas e esteja apto a falar com desenvoltura. Os amantes se deliciam com os primeiros momentos de encanto, mas sonham com o dia em que poderão se unir para sempre e viver na plenitude a relação que os faz felizes. Em todos esses casos, o tempo é visto como bom, a mudança é vista com otimismo e o fluxo constante das coisas, como uma bênção. O tempo possui sempre essa dupla faceta: é o destruidor do que é, mas é o produtor de tudo que pode ser. Leva embora o que amamos, mas traz consigo a possibilidade de realização do que sonhamos ter. A relação do homem com a morte, como fim inexorável do tempo para o indivíduo, é apenas uma relação entre outras, que ganha importância à medida que a velhice avança e a anuncia iminente. Contudo, mesmo à porta da morte, ali onde pode parecer inevitável sentir medo, frustração, raiva pelas possibilidades que cessam, é possível para alguém cuja vida foi bem vivida sentir-se tranquilo, realizado e grato por tudo que o tempo lhe proporcionou. Portanto, uma ênfase no tempo com viés exclusivamente negativo (o que poderíamos chamar de visão do idoso frustrado) precisa de uma justificativa clara, porque não está na própria natureza das coisas nem na própria natureza do homem ver o tempo assim mais do que vê-lo de outra maneira. O ser humano que lamenta a cessação das possibilidades de ser é provavelmente aquele que não aproveitou bem nenhuma das que teve até então.
Contudo, no comentário aos demais itens, considerarei, por amor ao argumento, que tal visão fosse justificada.
2. No que se refere ao instinto, sua explicação me causou alguma surpresa. À leitura da postagem anterior, eu considerava que o instinto era uma reação contra o tempo no sentido de que, através dele, a espécie legava aos seus novos representantes, na forma de impulsos, tendências, pulsões e intuições, a experiência acumulada pelos indivíduos anteriores, de modo a que cada existência individual, embora sendo um recomeço, deixava de ser um recomeço a partir do mesmo ponto, visto que alguma parcela de aprendizado restava preservada. Era, assim, uma vitória contra a corrupção do tempo. Contudo, pelo que explicaste aqui, não é nesse sentido que o instinto é uma reação contra o tempo. Aliás, tal condição nem se refere ao instinto em geral, mas sim a um instinto em especial, que, embora não explicitamente nomeado, suponho tratar-se do instinto de autoconservação. Fundar as demais reações ao tempo, que são francamente culturais, numa primitiva reação instintiva, de tom naturalista ou quase naturalista, em prol da autoconservação parece bastante problemático. Pode ser chamada de instinto uma reação à ameaça da morte que só a razão é capaz de tecer? Até porque muito da cultura posterior exigirá, para sua construção ou manutenção, uma série tão intensa e crescente de riscos à autoconservação que, em qualquer cálculo racional, quem raciocinasse a partir da autoconservação dificilmente optaria pela cultura.
3. Ao falar do hábito, você faz referência a "ações repetidas que mascaram a falta de sentido, dotando de continuidade os eventos que simplesmente ocorrem no tempo". Creio que você se refere a todas as ações. Nesse caso, ter fome, perceber que não se tem o que comer, perceber que seres vivos do ambiente podem servir de comida, armar-se devidamente, sair para capturar e matar esses seres vivos, ser bem sucedido nessa empresa, prepará-los para serem consumidos e, finalmente, consumi-los seria, por exemplo, uma sequência não dotada de sentido, apenas "eventos que ocorrem no tempo". Mas, ao converter-se a caça num hábito, repetido sempre em determinados dias e horários, com determinadas técnicas e etapas, a "falta de sentido" dessa atividade seria propriamente "mascarada" e se teria algo assim como um sentido de continuidade dos acontecimentos. Ora, pergunto-me o que nos impede de ver as coisas exatamente em sentido contrário. Caçar para comer quando se tem fome como uma atividade plenamente dotada de sentido e a rotina habitual da caça como algo que vai embotando esse sentido, fazendo com que as ações se repitam sem clara referência a causas e fins, mas apenas por simples força da reiteração. Que o hábito é um mecanismo útil de aprendizado, na medida em que torna certas atividades automáticas para que nossa atenção se possa voltar para outras, não se pode negar. Mas que seja uma reação contra o tempo, capaz de dotar de sentido sequências casuais de ações, me parece bem duvidoso. Pelo contrário, eu estaria inclinado a comparar o hábito com um tipo de morte: não por cessação da vida em si, mas por cessação da capacidade de experimentar cada momento dela com sua cor e seu sabor originais. Por fim, é claro que "cultura" e "tradição" estão ligadas à noção de uniformidade e continuidade, sendo, nesses traços, semelhantes ao hábito. Mas entre hábito e cultura e entre cultura e tradição há também um abismo de diferença, que o texto, pelo menos da postagem, não parece levar em conta.
4. Na abordagem da memória e do esquecimento você me parece ter sido mais feliz (com exceção, que precisa ser destacada, da comparação da memória com o hábito, pois repetir uma ação por simples hábito, de acordo com a observação que fiz acima, é muito mais uma forma de esquecimento que de lembrança). Você fala de complementaridade entre memória e esquecimento e de seletividade (que é melhor do que "escolha", porque não tem implicações consciencialistas e intencionalistas) da memória, e nisso o que você diz é, a meu ver, irretocável. Contudo, o que você diz sobre a memória selecionar entre positivo e negativo, eu colocaria em termos de seleção entre o relevante (que pode ser relevante porque positivo, como o nascimento de um filho, ou porque negativo, como uma surra) e o irrelevante. Não lembramos do que é "digno do lembrança" (do contrário não esqueceríamos locais da chave, senhas de banco, regras gramaticais e recomendações de segurança), e sim daquilo que, por se agregar e misturar com o que somos, pensamos, sentimos ou fazemos, se torna insuscetível de esquecimento. Isso também acentua que o esquecimento tem precedência sobre a memória, sendo esta exatamente o patrimônio de vivências que, por alguma razão e ao contrário de todas as outras, não foi escoado pelo esquecimento. Que a consciência "presida" esse processo é ainda mais suspeito, mas disso me ocupo no último item.
5. Neste último item quero restringir minhas considerações a dois pontos que julgo igualmente relevantes. Eles são, por assim dizer, o problema epistêmico e o problema ético da opção pela centralidade da consciência:
a) O primeiro ponto é que o texto adota uma perspectiva que podemos chamar de fenomenológica (tratar o tempo, o hábito, a memória etc. não como fatos de um mundo natural, mas como acontecimentos que afetam o mundo humano, dotados de sentido humano e descritos exatamente tal como a consciência os experimenta, apreende e avalia) e, como tal, peca por adotar de modo não problemático o ponto de partida do eu cartesiano. Pois a consciência aqui descrita nada mais é que a expressão e a continuidade do "cogito", do ato de autoapreensão psicológica pelo qual se percebe e se experimenta um "eu sou" na vida e no mundo. Nisso não se percebe que a consciência não é um acontecimento sobrenatural, mas sim o produto de um processo de desenvolvimento a partir das primeiras percepções e reações nervosas de organismos num ambiente desconhecido. O texto opta por uma ingenuidade científica, que é a de tratar a consciência como ponto arquimediano de qualquer abordagem do tempo, sendo que pontos arquimedianos devem ser firmes e unitários, e a consciência não é nem uma coisa nem outra. A consciência, na economia do ser humano, tem um papel bastante restrito e bastante discreto. Das várias operações que tornam o surgimento e a continuidade da vida humana, apenas um mínimo é consciente; das várias escolhas e ações que dão à vida de cada indivíduo sua particularidade biográfica, apenas um número restrito delas tem razões ou justificativas inteiramente racionais e conscientes. A consciência é, quando muito, uma personagem coadjuvante no drama humano. Afirmar o contrário é simplesmente ignorar um século de descobertas, bastante apoiadas empiricamente, seja da neurociência, seja da psicanálise. A partir dessa última, poder-se-ia descrever a consciência como um mosaico de tendências e percepções isoladas, um tecido vazado em que se ocultam as pulsões insconscientes que lhe deram origem, um palco mal iluminado em que apenas algumas figuras e atores estão visíveis ao expectador solitário e em que o quebra-cabeça não se completa nunca simplesmente porque peças fundamentais foram trancafiadas no quarto escuro da inconsciência. Sendo assim, não surpreende que a análise encontre no fim do trajeto apenas aquele ponto em que ela já se tinha apoiado desde o princípio: a consciência. O método fenomenologico da procura prenunciava e predeterminava o resultado cartesiano da descoberta final. A carta que o mágico mostra ao fim do seu número não é senão aquela que ele carregou consigo na manga desde antes de entrar no palco. Sendo assim, o texto precisaria justificar-se em sua abordagem e escapar da crítica à sua ingenuidade, cartesianismo e sobredeterminação metodológica.
b) O segundo ponto é a afirmação segundo a qual "aquilo que o instinto parece querer preservar em última instância é a própria consciência". Primeiro, em todos os tempos os homens buscaram os sonhos, a embriaguez e o êxtase (todos eles estados de nublação, entorpecimento ou suspensão da consciência), sem que nenhum instinto natural interviesse para impedi-los de fazê-lo. Segundo, tal ponto de vista parece endossar uma visão de que o homem é um ser voltado para o permanecer vivo e consciente a qualquer preço, coisa frequentemente negada pelos mais diversos exemplos. Diversos homens ao longo dos tempos e das culturas têm preferido a morte à escravidão, à subserviência, à solidão, ao sofrimento etc. Sendo assim, se o homem (e não um naturalístico instinto) luta para preservar alguma coisa, não é a consciência em si, nua e sozinha, e sim uma experiência qualificada de vida, para a qual a consciência é, se muito, uma componente necessária, mas não suficiente. De nada vale, por exemplo, se estiver desligada dos elos biográficos e éticos com lugares, situações e pessoas que dotam a vida de um sentido que transcende a mera existência. O homem é mais que esse ser covarde que vê no tempo o arauto da morte e quer a todo custo preservar-se autoconsciente no mundo - ele é exatamente o ser capaz de dotar essa existência de um sentido tão peculiarmente humano que nenhum tempo é capaz de apagar, porque é eterno não na duração que abocanha, mas na intensidade com que se experimenta.
Espero pelos seus comentários às minhas considerações.
Caro, David. Obrigada por seus comentários. Confesso que não estou pronta para responder a nenhum deles, mas vou tentar.
1. Quanto à avaliação negativa do tempo, considero que os seus exemplos levam a ideia de que o ideal seria que pudessemos parar o seu transcurso. Se passei esta ideia, gostaria de dizer que não foi intencional, mesmo porque avalio isso como impossível. Vejo, assim como me parece que você apresentou de modo geral em suas colocações, que seria propriamente humano reagir a corruptibilidade do tempo dotando de sentido (e significado) sua sucessão. Na verdade, vê-lo como bom ou ruim seriam apenas polaridades, dentre as quais o intérprete poderia optar, mas o que me parece importante ressaltar é que considerar o termo final de um processo como bom, como o pai que quer ver o filho crescer, ou o empresário que quer ver seu negócio dar certo, parte do pressuposto de que o indivíduo consegue desprender-se do presente (quando o processo está em vias de realização) e se projeta ao futuro que, em todo o caso, é incerto. Assim, a acidentalidade da realização completa e com sucesso dos processos está sempre em relação com a necessidade do termo final inevitável: a morte. Pensei em um exemplo sobre esta questão, que é o fato de que se soubéssemos a data de nossa morte se isso nos faria sermos melhores ou piores em nossas vidas. Minha ideia é de que depende do modo como o próprio agente interpretaria esta informação. E, a depender de em qual polaridade ele se definisse, teríamos como esperar modos de vida bem diversos. Concordo com você que a passagem do tempo não tem significado bom ou ruim por si mesma, só que acho relevante a relação entre o contingente (humano) e a necessidade (morte).
Assim, não nego a questão da dupla faceta do tempo (destruidor do que é e produtor do que poderia ser), mas questão da cessação das possibilidades não me parece que cause embaraço apenas ao que não aproveitou as oportunidades, mas afeta o humano individual, pois não sabe se a sua consciência vai simplesmente dissolver-se, levando consigo todas as suas vivências e autocompreensões que produziu com altos custos durante sua vida. A mortalidade do homem parece ser relevante sim para esta consideração.
2. Não sei se entendi bem, mas achei que você apontou que a "vítória" sobre a corrupção do tempo ocorreria coletivamente e não individualmente. Assim, se compreendermos o instinto como especificamente o instinto de autoconservação, isso não seria suficiente para fundamentar a reação a corruptibilidade do tempo. Acho que na minha consideração sobre o individual, ressaltei a corrupção do indivíduo, pois considerei que o problema começa com ele, com a experiência da passagem do tempo e com a percepção da mortalidade. Nisto você tem razão em caracterizar a perspectiva de fenomenológica, mas mesmo refletindo na dualidade entre corpo e alma, ou seja, que seria próprio do cógito, considero que a possibilidade de que além do corpo a alma também esteja sujeita a corrupção uma ideia nada animadora para o indivíduo. Partindo da perspectiva coletiva, aparentemente o indivíduo não tem importância crucial, o que não ocorre se adotarmos o ponto de partida inverso. Parece-me que o instinto mostra a sua faceta mais interessante se a perspectiva a partir da qual observamos seja a do indivíduo e não a do coletivo, que permanecerá provavelmente para além do tempo de vida dos indivíduos. Uma resposta individual a esta perspectiva da corruptibilidade é dada pela execução de uma grande obra ou de grandes feitos, como parece-me que era a inspiração Grega, por exemplo. Porém, como fui formada em mentalidade moderna e até certo ponto esvasiada de valores religiosos, não consigo compreender como a dissolução do indivíduo e a permanência da obra pode de algum modo vencer o tempo. Parece-me que não o vence e a necessidade da corrupção permanece.
3. Quanto a questão do hábito que embota o sentido, considero que a tendência é essa mesma, para que possamos voltar a nossa atenção para outras coisas. Porém, acho que a lembrança e o esquecimento podem ser exercitados de modo reflexivo, esta sim capaz de tirar certos elementos habituais da mera repetição para uma execução refletida. Daí que eu tenha incluído a cultura, pois estou pensando na possibilidade, por exemplo, de um acadêmico que recebeu toda a formação segundo o modelo geral de sua época, compondo, assim, uma certa tradição. No entanto este acadêmico pode aproveitar esta tradição simplesmente furtando-se de ser criativo. A esta atitude eu chamaria de hábito passivo, a repetição pela repetição, que, como você afirmou, é a morte do sentido. Mas, relembrar-se do passado e reapropriar-se dele seria um uso em minha opinião ativo da tradição e, por mais que gere (ou não) repetição passiva no futuro, para o indivíduo que o produziu a apropriação criativa parece ter uma conotação especial.
4. Quanto a questão da seletividade como melhor que o termo escolha, eu considero que sim, pois o termo escolha remete ao uso ativo e não a mera repetição habitual, como apontei nas consideração do item 3. E, quanto a substituição do relevante/irrelevante ou invés de positivo/negativo, acho que já pressupõe que o hábito é a morte do sentido. Então, posso até substituir os termos, mas como avalio que a realização do hábito pode se dar de duas formas diferentes e que o cotidiano pode ou não ser encarado como banal, a substituição não retira o significado que queria oferecer a esta seleção. Queria dizer que nossos critérios de seleção são eles mesmos frutos de uma educação (habitual, tradicional) e que temos que recorrer a ele de modo criativo.
5. Quanto a centralidade da consciência, acho que ela é decorrente do significado congruente que procurei dar a relação entre os instrumentos de reação ao tempo e ao fato de que centrei minha análise no indivíduo. Dito isto, não sei o que dizer quanto ao seu comentário a), pois também acho que a consciência é sede de percepções isoladas, mas sendo ela capaz de mover-se entre passado, presente e futuro, seria também capaz de dotar de sentido, que não se resume a mera continuidade temporal, mas ao próprio significado que o indivíduo atribui a essa continuidade. Quanto ao item b), parece-me que os seus exemplos levam a ideia de que a autopreservação por si mesma não é valiosa, pois há casos de pessoas que preferiram a morte à sujeição à uma vida que na consideração delas não valia a pena ser vivida. Eu concordo com isso, por isso associei a continuidade com a atribuição de sentido. Se é a consciência o "instrumento" próprio destas duas atividades eu não saberia dizer. Posso dizer apenas que tomei o termo "consciência" em sentido amplo, como psique, e, por isso, achei que sendo ela educada em uma tradição, está tendente a atribuir certos sentidos, mas também é capaz de submetê-la a exame e reelaboração.
Espero que as ideias tenham ficado mais claras.
Respondendo às suas respostas.
Em 1, penso que considerar que a finitude da vida tem importância para todas as pessoas é correto, mas não necesssariamente no sentido de criar uma sede de imortalidade. Muitos povos e religiões lidaram de modo muito positivo e alegre com a ideia de dissolução da consciência individual após a morte, sem experiências de angústia ou de ausência de sentido nisso. Muitas pessoas hoje, mesmo sem serem religiosas, consideram suficiente e bastante satisfatória a ideia de que temos que fazer o melhor que pudermos com o tempo que temos nas mãos. Nesses casos, a angústia com a morte é substituída por uma preocupação contra a insignificância, o tédio e a inautenticidade. A morte continua, concedo, sendo importante como horizonte final incontornável, mas não no sentido de nos forçar a uma estratégia de imortalidade. Essa é só uma das reações possíveis, não a única, nem a principal.
Em 2, não é preciso ser religioso para antepor a continuidade do coletivo à finitude do individual. Pais fazem isso em relação a filhos, estadistas em relação a seus sucessores, professores em relação a alunos. Não há nenhum instinto dizendo para sobrevivermos a qualquer preço e para só considerarmos que houve uma vitória sobre a morte se nós mesmos, como indivíduos, permanecermos vivos. Aliás, as pesquisas darwinistas mostram o contrário: que o organismo é programado para ter, proteger e fomentar sua progênie, e não a si próprio. É o indivíduo moderno, cujo universo gira em torno de um "eu" narcísico o único ser que não vê que sua individualidade tem apenas um pequeno papel na manutenção de um processo que o supera tanto em duração quanto em importância.
Sobre 3, penso que estamos divergindo apenas sobre palavras. Eu só chamaria de hábito a incorporação, mediante repetição, de comportamentos na memória subconsciente, como ocorre com andar, pedalar uma bicicleta, mudar a marcha de um carro etc., coisas que se pode fazer sem dedicar atenção, porque se tornaram automáticas. O que você chama de uso ou reiteração "ativa", na medida em que envolve consciência ou até reflexão, eu já não chamaria de hábito. Mas basta que nos entendamos quanto ao sentido em que estamos empregando os termos.
Sobre 4, parece que, como você assinalou, depende de nos entendermos sobre 3.
Em 5, você parece não se dar conta de que, toda vez que se pergunta: Que sentido tem isso (o tempo, a morte, a memória etc.) para o homem?, já está supondo que colocar-se no lugar do homem que experimenta tais coisas é assumir a posição a partir da qual se obtêm respostas mais adequadas. Não nego que seja uma fonte importante de respostas fecundas, mas nego, sim, que seja privilegiada. Por isso, deveria interagir com o ponto de vista das ciências naturais (para as quais a consciência não passa de uma entre várias ferramentas de adaptação e sobrevivência) e com o aguilhão crítico da psicanálise (para a qual a consciência recobre apenas uma mínima parte da psique, cuja estrutura maior e mais profunda é toda não consciente).
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