domingo, 22 de agosto de 2010

Micro-história, Etnografia, Jornalismo e Internet



A postagem a seguir tem como base o capítulo 2 da obra O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa de Robert Darnton. Na verdade, seria mais correto afirmar que tecerei algumas reflexões a partir da obra, aplicando o que considerei ser o método historiográfico do autor ao nosso contexto contemporâneo em que a construção coletiva de nossa compreensão de nós mesmos e do mundo está, entre outros, fundado no jornalismo (televisivo, impresso ou virtual) e na internet.
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O capítulo 2 trata de episódio ocorrido no final da década de 1730 na gráfica situada na Rua Saint-Séverin em Paris e narrado pelo operário Nicolas Contat, que trabalhava neste local. O episódio em questão é um massacre de gatos levado a cabo pelos funcionários da gráfica após decisão do dono do local, a despeito do reconhecido amor que sua esposa nutria por um gato em especial: la grise. No entanto, esta decisão fora tomada em função das noites mal dormidas, devido ao fato de dois aprendizes - Jerome (o próprio Contat) e Léveillé -, cansados do tratamento que recebiam em seu local de descanso (a própria gráfica), subirem ao telhado do patrão e fazerem várias imitações de gatos, levando os patrões a mesma deficiência de descanso que eles mesmos tinham pela ação de verdadeiros gatos, que miavam e urinavam sobre o teto onde tentavam dormir todas as noites.
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O massacre dos gatos, então, é tomado por Darnton como uma expressão de relações sociais desiguais, devido ao contraste observado pelos aprendizes de que eles recebiam menos cuidado e atenção do que os gatos, os quais eram bastante apreciados como bichos de estimação pelos burgueses da época. Por outro lado, Darnton está interessado no significado cultural de matar gatos, especificamente este bicho e não outro, na França do século XVIII. E, além disso, mostrar que este episódio em particular guarda relação com o contexto geral da época, generalizando sua análise a partir da aplicação do método histórico-etnológico. Apenas para deixar os termos mais claros, a etnologia é um método de análise da cultura que parte das próprias práticas sociais e do que os participantes falam dela, para a definição de como aquela sociedade ou grupo social se autocompreende.
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Retornando para a análise de Darnton, resumirei a seguir suas conclusões. Com relação ao aspecto social, destaca o contraste entre a vida do aprendiz antes, no que chama de era de ouro, e na época do massacre dos gatos. No primeiro caso, havia igualdade e liberdade entre os tipógrafos com suas leis e tradições, para a situação em que empregados sem qualificação eram contratados, ameaçando o emprego dos mais qualificados. Com relação ao significado do gato, ele estava relacionado ao misticismo e a analogia com a animalidade do homem. Quanto ao primeiro aspecto, destacam-se práticas de alejar gatos por se acreditar que apenas assim era possível neutralizar o servo de uma bruxa e expressava a animalidade na medida em que estava relacionado a sedução e a sexualidade. E, com relação ao contexto mais amplo a que o episódio estaria conectado, podemos relatar os episódios de folia e de abstinência, representados respectivamente pelo carnaval e pela quaresma, o primeiro dos quais leva a expressão da violência e insatisfação contidos que foram clarificados em 1789 (Revolução Francesa).
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Estes elementos bastam para a reflexão em seguida, embora considere mais recomendável a leitura do capítulo, pois tive que tratar de modo sumário teses que Darnton desenvolve pormenorizadamente. Quanto às reflexões que gostaria de propor, elas são três: com relação a Micro-história, à quantidade de informações acessíveis e à velocidade na sucessão delas contemporaneamente, bem como o impacto destes dois para a compreensão atual de cultura. Primeiramente, a Micro-história lida com a aproximação em relação aos eventos particulares, o que indica seu afastamento em relação a generalizações precipitadas, que não permitiriam a percepção do agente histórico, por exemplo, e buscando o detalhe próprio de cada ação ou narrativa. Quando esta análise se restringe a fontes restritas de eventos passados, parece-me que o segundo passo da análise é justamente a generalização, como Darnton fez ao extremo de relacionar o episódio dos gatos à Revolução Francesa, como expressão que o massacre seria dos ciclos carnavalescos da cultura francesa do século XVIII.
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A questão é que, pensando os meios de comunicação disponíveis, tais como a televisão, o jornal e a internet, somos bombardeados por informações, algumas propagandeando produtos, outras com interesse de nos atualizar quanto a vários aspectos da vida, como o futebol, a política e o entretenimento. Aplicando o método histórico-etnográfico para a situação contemporânea, realizando então o que poderia ser propriamente chamado de crônica, seríamos obrigados a lidar com quantidade grande de informações que, sem as generalizações, provavelmente nos levariam a não compreender nem o sentido dessa sucessão, nem as nossas próprias vidas, nem a relação que guardamos com o mundo que nos rodeia. Deste modo, poderíamos afirmar que a fragmentação dos eventos em pedaços mínimos pode nos levar à experiência do sem sentido, por uma limitação humana de não conseguir lidar com todos os detalhes possíveis de cada aspecto nosso e do mundo. Assim, parece-me que alguma estabilidade é necessária na mudança. Ao invés de responder, então, deixo a pergunta: afinal, o que é nossa cultura contemporânea?

2 comentários:

Pres. David Naylor disse...

Olá, Débora, prazer retornar ao seu blog e comentar outra de suas interessantes postagens. Após ler o que você escreveu, decidi fazer as seguintes considerações:

1. Você diz que pretende tecer algumas reflexões a partir da obra de Darnton, aplicando o método historiográfico do autor ao nosso contexto contemporâneo. Ora, é muito problemático que isso seja sequer possível. A micro-história parte da descoberta, em registros e narrativas do passado, de elementos que parecem alheios e incompreensíveis para a mente moderna, supondo que é justamente aí que se pode encontrar a chave de compreensão da particularidade de uma passado ao qual não pertencemos mais. Aplicar isso ao tempo a que se pertence ou resultará impossível, porque, pertencendo a esse mundo, não se encontrarão aqueles itens incompreensíveis, ou resultará noutra coisa diversa da micro-história, pois, se, apesar de pertencermos a este mundo, encontramos nele elementos que nos são incompreensíveis, isso aponta para a existência, em nosso próprio tempo, de subculturas a serem estudadas em sua particularidade, o que é a tarefa da etnologia, e não da história. A micro-história parte da experiência do não sentido (não do homem em geral em relação ao mundo à sua volta, mas de um tipo específico de homem, o historiador, a respeito de um tipo específico de objeto, o texto do passado) para restabelecer inteligibilidade entre passado e presente.

Pres. David Naylor disse...

2. Mesmo que isso fosse possível, seria duvidoso que você o tivesse feito nesta postagem. Em primeiro lugar, é fundamental para a micro-história que o estudo se foque num texto e num episódio histórico em particular. Você falou em “informações” em geral (propagandas, notícias) dos veículos de mídia, mas não estudou nenhum relato histórico ou jornalístico em particular. Em segundo lugar, na micro-história se pode tentar generalizações a partir de percepções sobre relatos pontuais, mas o que você fez não foi examinar um relato pontual e generalizar algo a partir dele para o nosso tempo em geral, e sim falar da própria necessidade de generalizações como possibilidades de construção de sentido em meio a uma variedade complexa e cambiante de informações disponíveis. A relação que se estabeleceu para você entre esta sua afirmação e a abordagem darntoniana em O Grande Massacre de Gatos parece ter sido que, assim como, para o historiador, o estudo de um relato pontual só ganha seu sentido mais pleno na medida em que proporciona um insight relevante acerca de toda uma época, também para o homem comum seria necessário que, do vasto universo de “informações” (que aparentemente fariam o papel dos relatos pontuais) com que se vê bombardeado cotidianamente, ele possa extrair insights relevantes acerca de sua própria época (o que seria importante para ele por algum motivo, que você não chega a dizer qual é). Você parece ter a preocupação de que nos encontramos numa era de informações fragmentadas e ausência de uma visão global de mundo capaz de reuni-las todas num todo unitário dotado de sentido. Mas isso faz com que a sua postagem seja sobre a necessidade de generalizações, e não uma aplicação do método de Darnton.